Entrevista com Nelson Motta

Ele viveu a grande época da música popular brasileira e sempre foi a porta de entrada para os bastidores dessa indústria. Com vocês, o jornalista, compositor, escritor e produtor musical Nelson Motta.

Paulista, “naturalizado” carioca, Nelson Motta é também personagem das histórias que escreve, sejam elas narrativas reais ou ficcionais. Motta viveu o Rio de Janeiro dos anos 60, participou do movimento da bossa nova, produziu artistas como Elis Regina, compôs músicas que viraram clássicos – Como uma Onda é dele e do Lulu Santos –, foi diretor artístico da gravadora Warner Music, lançou Marisa Monte, ou seja, sempre esteve nos bastidores do que conhecemos como música popular brasileira. Apesar de sua ligação com a literatura ter começado em 1977, quando lançou O Piromaníaco, iniciou a transformação de seu conhecimento musical em livros com a edição de suas memórias em Noites Tropicais e, em novembro de 2007, lançou o aclamado Vale Tudo – o Som e a Fúria de Tim Maia, pela editora Objetiva. Aos 63 anos, é um homem com ouvido experiente, difícil de ser enganado, e que se diz satisfeito por ter esperado dez anos desde a morte do amigo Tim para lançar a biografia, já que ele considera um presente para uma sociedade careta ler as histórias de um artista completamente incorreto, mas autêntico e que passou longe de qualquer hipocrisia. A espera, por sinal, só aconteceu porque não se definia quem era o detentor dos direitos sobre a obra. A partir do momento que Carmelo Maia, o filho, ficou com a herança, foi fácil a negociação.

Nelson Motta esteve em Curitiba para uma palestra sobre a música popular brasileira dentro do projeto Diálogos Universitários, uma parceria entre a Souza Cruz e a Universidade Tuiuti do Paraná, e conversou com alguns jornalistas antes do evento. A conversa que você lê aqui foi complementada por e-mail. Atualmente, além de “ficar em casa escrevendo, de bermuda, regata e havaianas”, como afirmou em outra entrevista, Nelson é responsável pelo programa musical Sintonia Fina, pela Rádio Lúmen (FM 99,5). Bem humorado, emitiu opiniões sobre o mercado musical brasileiro atual, sobre o problema que é igualar artistas de renome como Caetano Veloso às celebridades vindas de programas televisivos como Big Brother Brasil e falou de novos projetos, como o documentário inspirado no livro Noites Tropicais e o filme Bandidos e Mocinhas. Um bate-papo com alguém que enxerga a música muito além de qualquer moda.

O que um artista precisa para não ser uma moda passageira?

Talento. Com a internet, a democratização da tecnologia de produção e gravação, hoje praticamente qualquer um pode fazer uma gravação em casa. Tem que ter talento porque tecnologia não dá talento para ninguém, mas não tem mais aquela desculpa do artista pobre, desconhecido, que mora longe. O cara que está em Montes Claros ou Baturité pode ser acessado do Alaska, Sibéria ou Rio de Janeiro, não muda nada. Exatamente por isso também, porque nunca foi tão fácil produzir um disco, nunca foi tão difícil se destacar, fazer sucesso e aparecer, mas é assim que as coisas melhoram. Quando tem muita gente fazendo, aí tem uma seleção duríssima, igual na natureza, os mais aptos sobrevivem. Esse som imperial, globalizante, Madonna, Michael Jackson, anos 80, vender 20 milhões de discos no mundo inteiro ao mesmo tempo, isso acabou.

E por que Julio Iglesias e Roberto Carlos, por exemplo, não saem de moda há tanto tempo?

Bem, porque são “clássicos populares”, artistas que venderam milhões de discos, fizeram incontáveis shows e programas de TV, estão acima da moda e do mercado: são história viva.


Você passou de produtor para escritor de música. Como é transformar a música em um livro?

Não tento transformar a música em livro. Na biografia do Tim, por exemplo, é claro que a música ganhou muito destaque, porque afinal o biografado era o Tim Maia, então analisei profundamente a obra dele durante o livro. Mas a música está muito presente na minha própria escrita, digo, no ritmo, na sonoridade das palavras, nas cadências, isso tem grande importância para mim, às vezes prefiro acrescentar um ou dois adjetivos, que sei perfeitamente desnecessários, só para melhorar o ritmo e tentar levar o leitor até o parágrafo seguinte. Na levada. García Márquez diz que você tem que hipnotizar o leitor, levá-lo numa cadência das palavras. Para mim, mesmo que possa parecer excesso, é swing. Minha prática como letrista de música ajuda bastante.

Dez anos separam a morte do Tim e o lançamento do seu livro. Essa distância foi positiva, até pelo fato de vocês serem muito amigos?

Na verdade o tempo me aproximou do Tim total, digamos assim. Esse livro não é uma biografia acadêmica, como as que o Ruy Castro e o Fernando Morais fazem, que acho espetacular, mas no caso do Tim não caberia isso, ia ficar até meio ridículo. É declaradamente uma biografia escrita por um amigo, por um fã. Agora, não escondi nada. Porque o Tim tinha um lado completamente bandido, umas coisas marginais, ele fez muita coisa maravilhosa e muita coisa horrorosa. Mas ele se orgulhava disso, de ser como era. Acho que a maior traição a ele seria tentar amenizar, apresentar ele como um bom moço, como politicamente correto. Deus me livre, ele ia infernizar as minhas noites. Já pensou o fantasma do Tim Maia enchendo o saco, não queria correr esse risco não… E acho que funcionou esse olhar do amigo, porque eu gostava do Tim Maia com tudo dele, não gostava do bonzinho só, gostava do malvado também, do generoso, do mesquinho, do talentosíssimo, do humor dele, das idéias. O Tim era muito doidão, mas falava muita coisa certa, sobretudo em relação a gravadoras, empresários, esse mundo artístico brasileiro, essas trambicagens todas. O Tim brigou a vida inteira pela independência dele e pagou um preço caríssimo. Então, queria que o livro fosse lido como um romance, com essa levada, “que tudo saia como um som de Tim Maia”, que alternasse o esquenta sovaco com o mela cueca, que era o segredo do sucesso dele. Acho que isso aproximou, o leitor se emociona, se apaixona, as pessoas morrem de rir, sofrem quando ele morre e, de certa forma, se sentem vingadas.

Por que vingadas?

Porque hoje em dia todos esses heróis contemporâneos, essas celebridades atuais, isso é tudo muito careta, muito politicamente correto, todo mundo tem responsabilidade social, tem a “ongzinha”, não sei o quê. E o Tim Maia é um trator passando por cima dessa hipocrisia toda, é um cara que viveu a liberdade ao extremo, então há uma certa vingança em poder apresentar o Tim Maia como um herói da música, do humor, da liberdade. E dez anos depois também foi melhor porque os valores hoje estão muito mais caretas e muito mais hipócritas.

Essa caretice se deve ao fato de o mercado ser voltado aos adolescentes?

Não, acho que não é devido a isso, é um contexto geral, não é só no Brasil, acontece nos Estados Unidos e na Europa também. As coisas ficaram mais rigorosas, mais caretas, não se pode fazer piada com nada, não se pode brincar com nada. Veja que o Casseta & Planeta só sobrevive porque eles têm, entre eles, um negro, um judeu e comunista ao mesmo tempo, que era o Bussunda, e diz a lenda que tem um gay. Então eles ficam à vontade, podem fazer piada de gay, de negro, de comunista, de um monte de coisas, porque têm ali entre eles, mas se não tivesse… Acho que são os valores, a sociedade de consumo, o valor da celebridade, metade das pessoas são célebres porque são, porque saem nessas revistas de celebridades. São esses ex-BBBs, é tudo nivelado, um ex-BBB e o Caetano Veloso, para eles, é a mesma coisa, tá uma festa… Um gênio musical e um imbecil, entendeu? E está tudo nivelado.

Você se considera um cara de sorte por ter vivido um momento de intensa produção, e de alta qualidade, da música brasileira?

Claro, mas sinceramente acho que não existe essa história de que no passado as músicas eram melhores. A salada está cada vez maior, mais variada e saborosa. Dou valor para os artistas, a música brasileira está cada vez melhor. Digo isso matematicamente porque, em 1970, tínhamos 90 milhões no Brasil e uma grande música popular, hoje temos 180 milhões, mais tecnologia de gravação, de produção, de música, o poder aquisitivo está melhor, então a minha dedução óbvia é que deve ter no mínimo o dobro de boas músicas do que tinha.

O que os artistas perdem quando decidem sair de uma grande gravadora para ter uma carreira independente?

Água na boquinha, paparicação, tratamento vip, essas coisas que artista gosta. Mas como isto custa e alguém tem que pagar, acaba mesmo saindo do que a gravadora lhe paga. Gravadora grande dá conforto, especialmente quando o artista é bom vendedor ou uma boa promessa, de todos os meios de produção e promoção. Mas sempre que um disco não vende, o artista culpa a divulgação e a gravadora “entuba”. Faz parte do jogo. Já numa carreira independente, os artistas muitas vezes deixam de ser crianças mimadas e passam a ser adultos, com consciência de todo o processo, atento a orçamentos, desperdícios, caprichos caríssimos, estrelismo intolerante, essas coisas em que ficaram viciados pelas grandes gravadoras.

Pensando nos nomes que já encabeçaram programas populares, que servem como grandes divulgadores, como Carlos Imperial, Chacrinha e hoje o Faustão. Qual a análise que você faz?

Os programas já foram melhores, com certeza. O Chacrinha era um cara genial, além de um grande artista, era um grande entertainer, o primeiro grande palhaço eletrônico, um crítico da sociedade, um anárquico total. Aquelas chacretes peladas, praticamente, aquelas bundas, isso não acontece na televisão de hoje. Isso é impossível hoje, a televisão está careta, já vão logo reclamar: “mas e a família, o PT, não sei o quê, a Igreja Católica, os Sem Terra?”.O Chacrinha tinha essa liberdade, o povo o amava, pode ver como é careta o Faustão. A coisa mais assexuada que existe são aquelas bailarinas do Faustão, com aquelas coreografiazinhas, não tem vida naquilo. O Imperial lançou o Roberto Carlos, o Erasmo Carlos e o Tim Maia, não preciso dizer mais nada. Ele era um cara esperto e se deu bem em tudo que fez, foi importante na música brasileira moderna e era um personagem interessante, um falso vilão, ele dizia “prefiro ser vaiado numa Mercedes que ser aplaudido num ônibus”. O Faustão acho um ótimo sujeito, um grande apresentador para o que é ali. Achava mais engraçado quando era do Perdidos da Noite, conheci o Faustão quando ele era repórter de campo, aquele que entrevistava o jogador na saída do jogo, era hilariante. O problema é que quando você quer atingir muita gente, tem que nivelar por baixo. É um problema. É uma opção, né?

Li que você, depois dos 60, anda curiosíssimo e animado a beça. Para onde você anda direcionando essa curiosidade e animação?

Para o trabalho, para os novos projetos e, é claro, para a família e amigos queridos. E continuo ligado à música de algumas formas, com o programa Sintonia Fina, que agora vai ter em Curitiba também e está no Brasil inteiro. Todo dia tem um artista novo, isso me dá uma grande animação. Sempre fui curioso, não tenho preconceito, sou novidadeiro, gosto de ouvir, não sou bobo também, porque para me enganar é difícil. Tenho 63 anos dos quais pelo menos uns 50 vivendo a música intensamente. Mas sou aberto, sempre fui. Falo dos artistas porque acho que alguém tem que fazer esse papel. Mas é claro que corro riscos, muita gente não deve concordar, dizer que tal negócio é ruim, que devo estar meio maluco… Mas digo o que sinto, sou sincero e incorruptível, por isso as pessoas confiam em mim. O cara pode não concordar com a minha opinião, mas você nunca vai ouvir alguém falar: “ah, ele é um picareta”. Podem dizer: “ah, o cara tá maluco, tá doidão, tá velho e tudo, mas ele é honesto”. Entendeu? E é do ramo. Então continuo fazendo esse papel.

Quais são seus próximos projetos?

Vou me dedicar agora ao cinema, fazendo o roteiro de Noites Tropicais, documentário, e Bandidos e Mocinhas, que vai virar filme da LC Barreto com Luana Piovani no papel da delegada Marlene. Estão fazendo o roteiro e tal, não sei direito porque é o Bruno Barreto que está produzindo e confio muito nele. Mas acho que o meu melhor livro, que queria que ele fizesse, é o Ao Som do Mar e à Luz do Céu Profundo, um romance que se passa em 1960, no Rio. Espero que a gente venha a filmar logo esse. E também pretendo lançar, mais pro final do ano, um CD só com músicas minhas, mas com uma nova roupagem, cantadas por gente boa e nova na praça.

*Publicada na revista TopView entre 2007 e 2009.

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