Entrevista com Antonio Thadeu Wojciechowski.

Polaco da Barreirinha

Vida/ um ano a mais/ um ano a menos/ que diferença faz/ quando já somos/ mais ou menos/ mais suaves/ mais sábios/ mais fortes/ mais justos/ e de mais a mais/ cromossomos/ um ano a mais/ um ano a menos/ a vida é cais/ e lá vão nossos sonhos:/ barcos pequenos/ um ano a mais/ um ano a menos/ lendo os sinais/ nos esquecemos/ e quando nos lembramos/ é tarde demais/ um ano amais/ outro odiais/ um ano demais/ outro de menos/ um ano tanto fez/ outro tanto faz/ um ano como nunca ouve outro/ um ano sem pagar e só levando o troco/ um ano que vem/ um ano que vai/ e os mesmos ais/ mais amenos. Leia a entrevista com o autor do poema Vida, Antonio Thadeu Wojciechowski.

Antonio Thadeu Wojciechowski é um homem alto, que carrega o mesmo bigode desde os 24 anos. É poeta, compositor, escritor, publicitário e pai de quatro filhos. Thadeu é cheio de amigos e parceiros, na vida e na poesia. Simples, sincero, falador, esse polaco de origens misturadas recebeu o PlanoB em sua casa, na Barreirinha, em uma fria e chuvosa noite de Curitiba. Falou sobre os mais de 60 parceiros de música, o livro lançado recentemente, Não Temos Nada a Perder, o cd que vai lançar em breve, Wojciechowski, e sobre o blog polacodabarreirinha.blogspot.com. É assim que começa essa conversa.

Aconteceu um acidente no seu blog, né?

Entraram já duas vezes. Uma não consegui salvar porque eles deletaram tudo, mas eu tinha cópia no Word. Eles entraram numa madrugada, daí pediram dinheiro, é óbvio que eu não iria pagar 250 euros, então preferi abrir um outro endereço. E daí entraram nesse endereço novo, só que o cara exigiu dinheiro e não fez nada. Mudei de senha, não sei se ele perdeu a jogada…

Quando cheguei aqui a gente estava conversando sobre a falta do interesse da imprensa sobre o seu trabalho, mas os hackers estão interessadíssimos pelo jeito.

Tão né, é que escrevo muito. Agora estava com 642 postagens de setembro de 2005 pra cá. Daí deletei 300 e poucas para poder aliviar um pouco o blog, porque se tem muito volume os caras acham que tem um valor muito grande e tal.

Procurei seu último livro, Não Temos Nada a Perder, escrito em parceria com Sérgio Viralobos, pelas livrarias de Curitiba e não achei…

Tem na Livraria do Chain e na Guerreiro. A Livraria Curitiba não quer comprar, a Livraria Ghignone não quer comprar, não quer nem aceitar em consignação. Você acredita nisso?

Por que?

Não sei qual é a política que eles têm. Porque veja bem, para um cara de livraria, um vendedor, o que eu posso significar? Nada, né? Se não tem lá um cadastro para saber quem é quem, não sou eu quem vai chegar lá e dizer: ‘tenho tantos livros e tal’. Não dá para eu chegar lá e fazer isso. Fui e deixei dez livros na Guerreiro, dez no Chain, dez no Beto Batata…

No Beto Batata eu comprei o último.

Que bom, vendeu tudo já. Lá sempre vende bem, por isso que sempre faço lançamento lá, paga quase a edição do livro. Então, cheguei na Livraria Ghignone e não aceitaram o livro. Na Curitiba pegaram o livro e disseram que iam ler e daí entrar em contato para ver se interessava aquele livro na livraria. Daí, falei: ‘mas quem vai ler esse livro?’. ‘Eu mesma’, disse a vendedora. Digo: ‘ah, você, então boa leitura’.

Dá vontade de dizer: então você paga esse, lê e depois me avisa.

Dá vontade de dizer: dá para você pagar esse pelo menos, já que você não vai comprar…

Sempre foi assim?

Sempre. Mas eu vendo bem. De todos os meus livros tenho pouquíssimos exemplares. Dos 25 que publiquei, isso sem contar os que não são vendidos, são capítulos, outras coisas. Não tenho nada, quase. Tenho um pouco de TAO (publicado em 2001), um pouco de Não Temos Nada a Perder. Os outros, não posso nem dar porque nem tenho cópia. Agora consegui uma cópia de um livro que eu gostava muito, tinha lançado uns anos atrás, consegui uma cópia graças a uma amiga que faleceu. Tadinha…

Era uma cópia autografada que você resgatou?

Isso. Mas ponho muita coisa no blog, no momento estou treinando decassílabo e dodecassílabo. Então estou colocando só o que escrevo diariamente. Hoje (22 de maio), por exemplo, coloquei duas pérolas e não é todo dia que você faz duas pérolas. Fiz um de manhã sobre a Chuva e fiz outro à tarde sobre a Vida de Poeta, fiquei muito satisfeito com os dois. Porque é difícil eu me contentar, viu? Às vezes faço, ponho, mas não curto.

Coloca para testar?

É, daí vejo o que as pessoas dizem.

São sempre comentários muito amigáveis.

É, porque na verdade é tudo um bando de puxa saco, hahaha, apesar de que a maioria eu não conheço. Conheço uns quatro, cinco, seis que visitam o site.

Que são os nomes linkados no seu blog.

É, os linkados, que vão lá e tal. O resto não conheço, mas fico feliz pela recepção, pela forma como eles entendem o poema. Muitas vezes eles pegam só um aspecto do poema, mas já é bastante. O pessoal não gosta muito de poesia, prefere essas coisas fáceis, tipo essas letras de música que estão no rádio hoje. Elas são uma poesia de consumo de fácil leitura, aliás nem precisa entender nada, simplesmente ouve e dança, mexe a bunda, não? Agora a poesia mesmo, como entendo poesia, é uma coisa mais sofisticada, uma leitura mais inteligente, digamos assim.

A primeira pergunta que eu pensei em fazer, lendo a sua poesia, é: só o amor salva, Thadeu?

Só o amor salva, hahaha. Na verdade, veja bem, tenho um grande amor na vida que é a poesia. Esse amor me dá força, me sustenta, me deixa vivo, faz eu enfrentar qualquer dificuldade com clareza, com discernimento, até com alegria às vezes. Acredito mesmo que esse amor que tenho pela poesia seja tudo, o maior tesouro que tenho na vida. Porque a poesia se mistura muito com a vida. Para mim, são os vários retratos que faço da vida. No fim, você pega cada pedacinho daquele e vai ter a qualidade da vida. Se você ler os poemas que postei hoje, vai achar engraçado porque escrevo sobre isso.

E como é a vida de poeta, como você começou a ser poeta?

Sou poeta desde que nasci. Vou fazer 56 anos esse ano. E comecei a escrever bem cedo, acho que tinha cinco para seis anos, acho, quando comecei  a escrever versinhos. Minha mãe adorava versos. Minha mãe é uma mulher que teve 10 filhos e a gente era muito pobre, mas pobre de dar dó mesmo, e minha mãe tinha tempo para ler, para declamar poesia, e ela adora Augusto dos Anjos. E, por incrível que pareça, meu poeta preferido, de todo o mundo o meu poeta preferido é Augusto dos Anjos. Acho o poeta mais lindo de todos, que tem mais beleza interior. As pessoas não entendem a poesia dele, até fiz um poema para ele esses dias, que era ‘para os que não entendem nada de Augusto dos Anjos’. Adoro o Augusto dos Anjos. Então a minha mãe, quando a gente era pequeno, ela vivia declamando poemas dele…

Como a sua mãe conheceu essa poesia?

Minha mãe era professora, foi professora em Blumenau e em Brusque. Daí conheceu meu pai, se mudaram para Curitiba, meu pai era polonês, pintor de quadros, de parede, de letras e tal, então meu pai também tinha um pouco de ler bastante e tal. E acabou contaminando. E desde pequeno a gente tinha essa coisa, essa disputa de escrever coisas e tal. Acho que no transcorrer de toda a minha vida a poesia sempre foi um elemento presente. Como leitura ou como expressão. Comecei cedo a fazer música, e a poesia se insere nisso também. Penso em música e poesia desde pequeno, amanheço com melodias, com pensamentos, o dia inteiro fico pensando nisso. Quando tenho que parar para trabalhar em alguma coisa me dá nos nervos, entendeu? Quando tenho que ganhar um dinheiro, acho horrível, sabe? Ter que parar para fazer outra coisa, que não é o que realmente gosto de fazer.

Com quantos anos você publicou o seu primeiro livro?

Com 18, super cedo.

Você ainda gosta do que você escreveu naquela época?

Não. Gosto de algumas coisas, mas também isso é normal, você pega um cd e gosta de duas, três músicas, pega um livro e gosta de meia dúzia de poemas e não gosta do resto, é natural isso. Estou gostando muito das coisas que estou fazendo agora. Não sei se é a natureza ou o que é. É que hoje em dia a gente não é levado por qualquer idéia, sabe? Antigamente qualquer idéia era a melhor idéia do mundo, já era um clássico. Hoje não é assim mais.

Com quantos anos aconteceu essa mudança?

Acho que foi nos últimos dez anos. Por isso que fico com pena quando penso no que o Leminski poderia estar escrevendo, quando penso no que o Marcos Prado poderia estar escrevendo. Lógico que eles fizeram coisas geniais, não tenho a menor dúvida, mas penso no que eles poderiam estar produzindo agora, com um pouco mais de maturidade, sabe, fico pensando nessas coisas. E escrevendo sobre essas coisas.

Você é professor de Letras?

Fui professor, parei de lecionar em 1983. Lecionei durante oito anos no Cefet e fui um bom professor de literatura. A diferença grande entre mim e os outros professores de literatura é que, para mim, está tudo vivo. A galera quase enlouquecia, completamente. Para você ter uma idéia tinha um clube de criação, que eu fazia funcionar nas tardes de sábado, e chegou a ter 800 inscritos para fazer parte da leitura e de conversas sobre literatura. É memorável. Tudo que eles escutavam em sala de aula era vivo, não tinha nada morto. Qualquer coisa que eu fosse ensinar partia de uma coisa viva, uma coisa que eles sabiam que existia, ninguém imaginava que estava se falando alguma abobrinha ali ou alguma coisa que não tinha serventia, tudo tinha serventia. Encontro muitos alunos na rua até hoje e ouço os maiores elogios. Isso é uma coisa muito recompensadora.

Ela se tornava próxima…

É porque realmente a poesia que fazem hoje em dia eu não entendo. Essa poesia que tem em revista, como uma poesia inteligente, uma poesia de transformação. Eu não entendo isso. Entendo a poesia que pego e leio, conheço as palavras, sei o significado das frases, o encadeamento e consigo entender se existe alguma verdade ali, se existe alguma coisa realmente transformadora. A poesia concreta começou, fez várias experiências muito interessantes, mas depois partiu para um campo meio auto-explicativo, meio auto-promocional e esqueceu de continuar fazendo poesia. E daí entrou uma escola, uma escola que não sei, meio vagabunda, meio… Não consigo entender o que eles estão fazendo mais, entendeu? Por isso que agora estou fazendo essa poesia, estou me concentrando cada vez mais em fazer uma poesia que não tenha uma palavra desconhecida. Nada. Que vá buscar a rima mais simples para transmitir a idéia. E essa é a idéia agora de fazer poesia.

Na prosa você também é assim?

Na prosa tenho um amor muito grande pelo Machado de Assis, pelo Dalton Trevisan e pelo Nelson Rodrigues. Acho que, para escrever, você no mínimo tem que prestar uma homenagem a esses três escritores que são os melhores do Brasil. Então tem que escrever uma coisa que esteja em ritmo e pé de igualdade, e em criatividade também. E, se possível, já que a gente tem toda uma experiência de poesia no ritmo, ainda acelerar mais o ritmo. Procurei trazer o ritmo que fizesse jus a homenagem que estou colocando no livro aos três, alguma coisa que realmente fizesse sentido estar ali os nomes dos três. Por exemplo, sou fã número um do Dalton Trevisan de Curitiba, eu não, né, minha turma toda, porque a gente adora o que ele escreve.

Você se preocupa em escrever mais poesia ou mais prosa?

Simplesmente em escrever. Tem dia que gosto de escrever uma coisa diferente. Estou fazendo agora meu segundo romance, O Mundo Cão é o Melhor Amigo do Homem. Já terminei três vezes, já deletei quatro vezes, não sei como, e agora estou reescrevendo de novo. Não deleto tudo porque tem alguns capítulos que realmente estão do jeito que quero que fiquem. Mas ainda não fechou, não bateu. Sabe, não é assim que quero que o livro saia, quero uma coisa melhor.

Você é muito rigoroso com você mesmo?

Sou. Bastante. Mas tem que ser, né? Tem que ser porque acho que o leitor número um que quero atingir sou eu mesmo. É a mim mesmo, eu lendo e me satisfazendo. Acho que esse é o objetivo da coisa. Se satisfaz a mim, que me considero uma pessoa sensível, emotivo, chorão e adoro as palavras, adoro ter sentido nas coisas que faço… Então o primeiro objetivo é fazer uma coisa bela pra mim.

Não sou leitora assídua de poesia, mas vi no seu livro uma poesia-crônica.

Você conhece um verso do Gregório de Matos? Ela abre o livro dele assim: ‘pois cronista sou’. Quando o Gregório de Matos faz relatos, ele não está só fazendo poesia, ele está contando toda… tem um poema que diz assim (recita):

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh! se quisera Deus que de repente
Um dia amanhecerás tão sisuda
Que fora de algodão o teu capacete!

Um poema maravilhoso. Ele está descrevendo tudo o que está acontecendo na Bahia dessa época. Os comerciantes, o açúcar que saia da Bahia e era fruto do trabalho escravo, e era levado pelos comerciantes, de graça, em troca de besteiras. Isso é uma espécie de crônica, não deixa de ser uma crônica. Não que ela precise ser isso, ela pode ser isso também.

A sua também é isso?

Também é isso. Não que seja isso, também é isso.

Gostei muito de um poema-crônica seu sobre Curitiba. Curitiba mudou muito?

Nossa… Para você ter idéia, dormi centenas de vezes bêbado na Praça Zacarias. Era o meu ponto de ônibus, então chegava ali as três da manhã e dormia naquela graminha. Hoje nem graminha tem mais, mas tinha ali uma graminha maravilhosa e eu dormia sem a menor preocupação com as minhas coisas, deixava meus livros, minha mala. Nunca acontecia nada. Vá fazer isso hoje em dia. Você acorda sem sapato, sem roupa, espancado, lógico que a mudança que me refiro é essa, essa desumanização da cidade, essa perda, como se Curitiba não conhecesse mais meu rosto. Entendeu? É tudo estrangeiro, é tudo sempre um estrangeiro que a gente não conhece. É impressionante, a cidade perdeu muito a sua identidade.

Você sempre murou aqui na Barreirinha?

Não.

Então por que você é o polaco da Barreirinha?

Quando comprei o terreno aqui disse: ‘agora sou o legítimo polaco da barreirinha’. Aqui o lugar é maravilhoso. Tem arara, papagaio, árvores, é uma coisa maravilhosa. De noite, um silêncio. É uma paz, uma tranqüilidade, meus amigos todos sabem o caminho, tem lugar para todo mundo, sábado tinha cinco pessoas dormindo aqui. E a casa estava cheia de gente, até umas cinco da manhã tinha umas 20 pessoas. A Barreirinha era um bairro silencioso, hahaha!

Como você ganha dinheiro hoje?

Com propaganda. Atualmente trabalho pra McCann, a McCann é a maior agência do mundo e trabalho na correspondente deles em Curitiba. É uma agencia local, com  ramificações pelo resto do mundo.

Você gosta de publicidade?

Tenho que gostar porque, veja bem, é o que me dá de comer. Posso pagar a minha luz, a internet, a escola dos meus filhos. Então é o que tem.

Mas preferia escrever poemas o dia inteiro.

Claro, se a gente morasse num país… Agora, na Alemanha, teve um poeta que lançou um livro e fiquei embasbacado. O cara fez leitura dez dias no teatro, em dez dias 3.600 pessoas com o livro na mão. E aqui o pessoal mal sabe ler…

Isso que Curitiba é, teoricamente, um pouco melhor do que o resto do país…

É por isso que dá para fazer uma tiragem de mil livros de poesia, e olhe lá, né? Uma tiragem de mil, dura uns cinco, seis anos.

Você falou dos seus parceiros, no Não Temos Nada a Perder, além do Sérgio Viralobos que também assina o livro, tem muita gente…

Os poemas são dos dois. Partimos do princípio que a poesia é uma conversa de pessoas inteligentes e sensíveis. Então é a coisa mais natural o pessoal vir aqui em casa, daí a gente tá conversando e de repente: ‘pô, que linda essa frase que você falou’. Entendeu? E põe ali. Daí começa a fazer, a falar, de repente mais gente começa a dar palpite, tem três, quatro que fizeram juntos aquela idéia. E como sou um construtor, tenho facilidade para ajeitar as coisas. Encaixar, fechar uma rima ou uma estrofe, montar mesmo. Fazer o trabalho do produtor da poesia. Mas faço questão de assinar com as pessoas, já que todas colaboraram. E muitas vezes criaram o clima para aquela poesia vir ao mundo. É importante essa energia que é criada para fazer aparecer uma coisa nova. O Leminski escreveu uma vez: ‘ainda vai chegar o dia que tudo o que eu diga seja poesia’. Isso é bem próximo do que eu penso. É difícil eu acordar e começar a pensar numa coisa que esteja dissociada da poesia. É como se tivesse um bicho vivo na cabeça provocando o tempo todo. De repente vem uma canção também, é uma coisa viva, como se fossem várias pessoas falando na cabeça ao mesmo tempo. Você começa a pensar uma coisa, vem uma porção de frases, daí você anota, por medo, porque você sabe que a idéia se repete, mas a forma como ela aparece não. E toda a sutileza está na forma que ela vem.

Você tem caderno de anotações?

Tenho computador. Tenho um iPod também, pra me socorrer. No começo era tudo à mão, mas o computador é um instrumento maravilhoso de trabalho. Só o Ctrl C, Ctrl V, já poupam algumas horas de trabalho.

Você era um grande parceiro do Marcos Prado, né?

A gente tem uma história bem engraçada, eu e o Marcos Prado. Eu tinha feito um concurso de poesia, quando estudava na Católica e tava me formando em Letras. Fiz um recital de poesia que chamava Sala 17. Convidei vários poetas, fizemos um recital, foi maravilhoso e tive a idéia de fazer uma antologia. Lancei para Santa Catarina e Paraná um concurso para poetas mandarem trabalhos que eu iria publicar. E eu tinha escolhido um poeta chamado Eduardo Cabral, que escreve muito bem. E quando eu tava finalizando o trabalho, já tinha escolhido todos os poetas, os 17, o Eduardo Cabral chegou e disse: ‘vou te apresentar um amigo meu que escreve melhor que eu e merece estar no livro’. O Marcos Prado tinha 14 anos naquela época. Ele tava com uma bolsa de lona, tirou os poemas e me deu. Falei: ‘realmente’. Ficamos amigos naquele dia. Ficamos durante 25 anos escrevendo e falando sobre poesia.

Vocês freqüentavam qual bar?

O Bar do Lino.

E o Bar do Meio?

O Bar do Meio foi depois que o Marcos faleceu. A gente salvou a nossa alma ali. Quando ele morreu a gente ficou muito triste, a gente se reunia toda noite ali e fizemos também um trabalho muito rico, muito legal, nesses dois anos que a gente freqüentou o Bar do Meio. Eu e o Edílson del Grossi fizemos quase 200 canções.

Hoje em dia você tem outros parceiros. Você acha que existe uma produção tão significativa quanto naquele tempo?

Acho que não dá para comparar as coisas, sabe? Mas é muito bom o que está acontecendo hoje.

Por que?

Porque é muito legal, uma poesia diferente. A poesia de Curitiba é muito especial mesmo. Porque, na verdade, tudo é ecologia. E aqui se criou uma ecologia maravilhosa, poetas, contistas, artistas gráficos… Tudo isso deu uma densidade emocional para a cidade que é uma poesia muito diferenciada. Acho que hoje a melhor poesia que se faz no Brasil é Curitiba. Não acompanho o mundo todo para poder dizer, mas talvez no mundo. E ecologia é essa coisa transformadora que vai moldando, são as influências que vão fazendo pequenas transformações. Como se você tivesse recebendo informação de tudo quanto é lado, e você é um produto disso.

E a maioria é escrita por homens…

É, infelizmente, mas têm algumas mulheres também.

A poesia é uma coisa mais masculina?

Não é uma coisa mais masculina ou feminina. Mas é que as mulheres não se interessam por isso. Mulher tem uma visão muito prática da realidade, eu acho. Isso talvez as afaste um pouquinho da poesia e da canção. Você veja como é raro compositoras…

Porque é todo um universo…

É, você pega na antiguidade, por exemplo, é tudo coisa de homem. Mas ainda bem que tem muitas poetas já.

Quais são os temas delas?

Falam tudo, as poetas que gosto falam como se fossem um parceiro mesmo. Mas tem uma maneira bem diferenciada de escrever.

Há de se manter feminina.

É, tem a Emily Dickinson, por exemplo, que tem uma poesia maravilhosa. Uma poesia que tem um lirismo, uma construção maravilhosa, adoro ler as coisas que ela escrevia, e ela ficou inédita a vida inteira, só publicaram o livro depois que ela morreu.

Talvez para os homens isso seja mais livre.

Porque a poesia também tem aquele lado de… você falou do cronista, tem aquele lado de estar presente, participando das coisas e dos movimentos.

E o que é o seu novo cd, o Wojciechowski?

Vou mostrar pra você, acho melhor (coloca o cd).

Tem uma música que fala sobre os corações enamorados. Você acha que os corações não estão mais enamorados?

Não, hoje os corações estão assexuados. Só querem trepar. Como se trepar fosse resolver a vida deles. O raciocínio que eles fazem é que a liberdade é ser livre sexualmente. Enquanto ser livre é ter consciência de tudo, consciência do universo e saber que o seu destino é construído através dos seus pés. E que a justiça você faz com os seus braços e pernas. Quando se tem essa consciência você é livre. Se você não tem, não serve para nada.

Mas quando você era mais jovem pensava assim?

Mas poeta pode, poeta não conta, hahaha.

Você sempre cantou?

Só canto em casa. Cantei no estúdio, mas poucas vezes canto em publico. Vou lá, canto umas canções que o pessoal gosta, mas não tenho essa coisa de me profissionalizar como cantor, nem quero.

Mas você pretende lançar o disco?

É, vou lançar, mas não sei se vou cantar do jeito que tá no disco. Acho que vou cantar com o meu violão, falar alguns poemas e só. Cantar outras músicas que não tem nada a ver com o disco.

Você escreve música?

Não.

Só toca.

Nem tocar direito eu toco. Falo pra todo mundo que o violão, para mim, é um instrumento de percussão. Toco, mas do meu jeito. Tem gente que acha que as músicas deveriam ser gravadas como eu faço com o violão, tem uns amigos que não gostaram do disco, eles preferem gravar a música como eu toco.

Faz o cd 2.

Falei que vou fazer, como é que chama… o acústico.

Voltando aos seus textos, vários que li achei que pareciam descrentes…

Não, não sou descrente não, sou até bem humano, humano demais até. Tomara que as pessoas aprendem a viver em paz. É só isso que a gente quer. Tem países em que o banco funciona no meio da rua, que a última queixa crime na delegacia foi anos atrás, e a gente aqui teve 10 mil mortes no ano passado. Nenhum país em guerra tem tanta morte quanto o Brasil vivendo sem guerra. Isso é uma coisa triste. Vejo crianças abandonadas, essa coisa de menina de 12 anos estar indo para balada, ficando grávida com 12, 13 anos, é um absurdo. Não tem condições nem de se sustentar e de se aceitar como pessoa, como é que vai sustentar outra, aceitar outra pessoa? Isso constrói uma história de dor.

É para falar para essas pessoas que você está deixando a sua poesia mais simples?

Para falar para todo mundo, não só para essas pessoas mas para todo mundo. Está se construindo uma história de dor, de violência, mas ao mesmo em que o momento é triste, depois ele é alegre, porque é a construção de uma história, de uma sabedoria. A dor e o sofrimento ensinam as pessoas. E isso vai fazer com que haja logo uma grande ação transformadora. Tem que ser.

Como você lida isso tudo com os seus filhos (Alessandro, Alua, Paola e Kevin)?

Bem, eles me adoram, né? O que posso querer mais do que ser um pai que os filhos adoram? Bom demais. Ultimamente tem sido difícil conversar muito, porque eles estão com muito trabalho, principalmente a Alua. A Paola é tipo eu, sabe? Ela é Leão e é Tigre no horóscopo chinês. O elemento dela é fogo, então, você pode imaginar, só dá ordens o tempo todo.

Você é assim?

Sou Tigre e Capricórnio. Tenho voz de comando, por isso que as coisas passam a acontecer.

Você faz aniversário em dezembro?

Faço aniversário dia 24 de dezembro. Nasci às 23h45 do dia 24 de dezembro. Minha mãe tava tirando o peru do forno, sentiu as contrações, a vizinha atendeu e eu nasci.

O sentimento de família é muito forte pra você?

As pessoas falam: ‘como é que você consegue falar tanto assim?’. Porque quando começo a falar não paro. E ultimamente tem sido um aprendizado ficar quieto. Fico lá em cima, quieto durante horas, na verdade tô falando porque estou escrevendo… Mas isso é porque lá em casa era uma loucura, na casa da mãe. Éramos nós, dez irmãos, e os amigos de nós todos. Era uma loucura, o dia inteiro aquela gritaria, a casa era uma festa. E a gente sempre atraiu muita gente para a nossa casa, o vovô Julio, pai da minha mãe, já era assim. Então a casa da minha mãe, quando ela era criança, também era assim, muitos filhos também e sempre tinha comida pra todo mundo. Sempre falo assim, apesar da pobreza quase absoluta que a gente viveu, a gente era muito rico. Nunca faltava comida, tinha sempre para nós e para quem mais aparecesse. Milagre é o que minha mãe fazia.

*Publicada originalmente no site O Plano B, entre 2005 e 2006.

Entrevista com Nelson Motta

Ele viveu a grande época da música popular brasileira e sempre foi a porta de entrada para os bastidores dessa indústria. Com vocês, o jornalista, compositor, escritor e produtor musical Nelson Motta.

Paulista, “naturalizado” carioca, Nelson Motta é também personagem das histórias que escreve, sejam elas narrativas reais ou ficcionais. Motta viveu o Rio de Janeiro dos anos 60, participou do movimento da bossa nova, produziu artistas como Elis Regina, compôs músicas que viraram clássicos – Como uma Onda é dele e do Lulu Santos –, foi diretor artístico da gravadora Warner Music, lançou Marisa Monte, ou seja, sempre esteve nos bastidores do que conhecemos como música popular brasileira. Apesar de sua ligação com a literatura ter começado em 1977, quando lançou O Piromaníaco, iniciou a transformação de seu conhecimento musical em livros com a edição de suas memórias em Noites Tropicais e, em novembro de 2007, lançou o aclamado Vale Tudo – o Som e a Fúria de Tim Maia, pela editora Objetiva. Aos 63 anos, é um homem com ouvido experiente, difícil de ser enganado, e que se diz satisfeito por ter esperado dez anos desde a morte do amigo Tim para lançar a biografia, já que ele considera um presente para uma sociedade careta ler as histórias de um artista completamente incorreto, mas autêntico e que passou longe de qualquer hipocrisia. A espera, por sinal, só aconteceu porque não se definia quem era o detentor dos direitos sobre a obra. A partir do momento que Carmelo Maia, o filho, ficou com a herança, foi fácil a negociação.

Nelson Motta esteve em Curitiba para uma palestra sobre a música popular brasileira dentro do projeto Diálogos Universitários, uma parceria entre a Souza Cruz e a Universidade Tuiuti do Paraná, e conversou com alguns jornalistas antes do evento. A conversa que você lê aqui foi complementada por e-mail. Atualmente, além de “ficar em casa escrevendo, de bermuda, regata e havaianas”, como afirmou em outra entrevista, Nelson é responsável pelo programa musical Sintonia Fina, pela Rádio Lúmen (FM 99,5). Bem humorado, emitiu opiniões sobre o mercado musical brasileiro atual, sobre o problema que é igualar artistas de renome como Caetano Veloso às celebridades vindas de programas televisivos como Big Brother Brasil e falou de novos projetos, como o documentário inspirado no livro Noites Tropicais e o filme Bandidos e Mocinhas. Um bate-papo com alguém que enxerga a música muito além de qualquer moda.

O que um artista precisa para não ser uma moda passageira?

Talento. Com a internet, a democratização da tecnologia de produção e gravação, hoje praticamente qualquer um pode fazer uma gravação em casa. Tem que ter talento porque tecnologia não dá talento para ninguém, mas não tem mais aquela desculpa do artista pobre, desconhecido, que mora longe. O cara que está em Montes Claros ou Baturité pode ser acessado do Alaska, Sibéria ou Rio de Janeiro, não muda nada. Exatamente por isso também, porque nunca foi tão fácil produzir um disco, nunca foi tão difícil se destacar, fazer sucesso e aparecer, mas é assim que as coisas melhoram. Quando tem muita gente fazendo, aí tem uma seleção duríssima, igual na natureza, os mais aptos sobrevivem. Esse som imperial, globalizante, Madonna, Michael Jackson, anos 80, vender 20 milhões de discos no mundo inteiro ao mesmo tempo, isso acabou.

E por que Julio Iglesias e Roberto Carlos, por exemplo, não saem de moda há tanto tempo?

Bem, porque são “clássicos populares”, artistas que venderam milhões de discos, fizeram incontáveis shows e programas de TV, estão acima da moda e do mercado: são história viva.


Você passou de produtor para escritor de música. Como é transformar a música em um livro?

Não tento transformar a música em livro. Na biografia do Tim, por exemplo, é claro que a música ganhou muito destaque, porque afinal o biografado era o Tim Maia, então analisei profundamente a obra dele durante o livro. Mas a música está muito presente na minha própria escrita, digo, no ritmo, na sonoridade das palavras, nas cadências, isso tem grande importância para mim, às vezes prefiro acrescentar um ou dois adjetivos, que sei perfeitamente desnecessários, só para melhorar o ritmo e tentar levar o leitor até o parágrafo seguinte. Na levada. García Márquez diz que você tem que hipnotizar o leitor, levá-lo numa cadência das palavras. Para mim, mesmo que possa parecer excesso, é swing. Minha prática como letrista de música ajuda bastante.

Dez anos separam a morte do Tim e o lançamento do seu livro. Essa distância foi positiva, até pelo fato de vocês serem muito amigos?

Na verdade o tempo me aproximou do Tim total, digamos assim. Esse livro não é uma biografia acadêmica, como as que o Ruy Castro e o Fernando Morais fazem, que acho espetacular, mas no caso do Tim não caberia isso, ia ficar até meio ridículo. É declaradamente uma biografia escrita por um amigo, por um fã. Agora, não escondi nada. Porque o Tim tinha um lado completamente bandido, umas coisas marginais, ele fez muita coisa maravilhosa e muita coisa horrorosa. Mas ele se orgulhava disso, de ser como era. Acho que a maior traição a ele seria tentar amenizar, apresentar ele como um bom moço, como politicamente correto. Deus me livre, ele ia infernizar as minhas noites. Já pensou o fantasma do Tim Maia enchendo o saco, não queria correr esse risco não… E acho que funcionou esse olhar do amigo, porque eu gostava do Tim Maia com tudo dele, não gostava do bonzinho só, gostava do malvado também, do generoso, do mesquinho, do talentosíssimo, do humor dele, das idéias. O Tim era muito doidão, mas falava muita coisa certa, sobretudo em relação a gravadoras, empresários, esse mundo artístico brasileiro, essas trambicagens todas. O Tim brigou a vida inteira pela independência dele e pagou um preço caríssimo. Então, queria que o livro fosse lido como um romance, com essa levada, “que tudo saia como um som de Tim Maia”, que alternasse o esquenta sovaco com o mela cueca, que era o segredo do sucesso dele. Acho que isso aproximou, o leitor se emociona, se apaixona, as pessoas morrem de rir, sofrem quando ele morre e, de certa forma, se sentem vingadas.

Por que vingadas?

Porque hoje em dia todos esses heróis contemporâneos, essas celebridades atuais, isso é tudo muito careta, muito politicamente correto, todo mundo tem responsabilidade social, tem a “ongzinha”, não sei o quê. E o Tim Maia é um trator passando por cima dessa hipocrisia toda, é um cara que viveu a liberdade ao extremo, então há uma certa vingança em poder apresentar o Tim Maia como um herói da música, do humor, da liberdade. E dez anos depois também foi melhor porque os valores hoje estão muito mais caretas e muito mais hipócritas.

Essa caretice se deve ao fato de o mercado ser voltado aos adolescentes?

Não, acho que não é devido a isso, é um contexto geral, não é só no Brasil, acontece nos Estados Unidos e na Europa também. As coisas ficaram mais rigorosas, mais caretas, não se pode fazer piada com nada, não se pode brincar com nada. Veja que o Casseta & Planeta só sobrevive porque eles têm, entre eles, um negro, um judeu e comunista ao mesmo tempo, que era o Bussunda, e diz a lenda que tem um gay. Então eles ficam à vontade, podem fazer piada de gay, de negro, de comunista, de um monte de coisas, porque têm ali entre eles, mas se não tivesse… Acho que são os valores, a sociedade de consumo, o valor da celebridade, metade das pessoas são célebres porque são, porque saem nessas revistas de celebridades. São esses ex-BBBs, é tudo nivelado, um ex-BBB e o Caetano Veloso, para eles, é a mesma coisa, tá uma festa… Um gênio musical e um imbecil, entendeu? E está tudo nivelado.

Você se considera um cara de sorte por ter vivido um momento de intensa produção, e de alta qualidade, da música brasileira?

Claro, mas sinceramente acho que não existe essa história de que no passado as músicas eram melhores. A salada está cada vez maior, mais variada e saborosa. Dou valor para os artistas, a música brasileira está cada vez melhor. Digo isso matematicamente porque, em 1970, tínhamos 90 milhões no Brasil e uma grande música popular, hoje temos 180 milhões, mais tecnologia de gravação, de produção, de música, o poder aquisitivo está melhor, então a minha dedução óbvia é que deve ter no mínimo o dobro de boas músicas do que tinha.

O que os artistas perdem quando decidem sair de uma grande gravadora para ter uma carreira independente?

Água na boquinha, paparicação, tratamento vip, essas coisas que artista gosta. Mas como isto custa e alguém tem que pagar, acaba mesmo saindo do que a gravadora lhe paga. Gravadora grande dá conforto, especialmente quando o artista é bom vendedor ou uma boa promessa, de todos os meios de produção e promoção. Mas sempre que um disco não vende, o artista culpa a divulgação e a gravadora “entuba”. Faz parte do jogo. Já numa carreira independente, os artistas muitas vezes deixam de ser crianças mimadas e passam a ser adultos, com consciência de todo o processo, atento a orçamentos, desperdícios, caprichos caríssimos, estrelismo intolerante, essas coisas em que ficaram viciados pelas grandes gravadoras.

Pensando nos nomes que já encabeçaram programas populares, que servem como grandes divulgadores, como Carlos Imperial, Chacrinha e hoje o Faustão. Qual a análise que você faz?

Os programas já foram melhores, com certeza. O Chacrinha era um cara genial, além de um grande artista, era um grande entertainer, o primeiro grande palhaço eletrônico, um crítico da sociedade, um anárquico total. Aquelas chacretes peladas, praticamente, aquelas bundas, isso não acontece na televisão de hoje. Isso é impossível hoje, a televisão está careta, já vão logo reclamar: “mas e a família, o PT, não sei o quê, a Igreja Católica, os Sem Terra?”.O Chacrinha tinha essa liberdade, o povo o amava, pode ver como é careta o Faustão. A coisa mais assexuada que existe são aquelas bailarinas do Faustão, com aquelas coreografiazinhas, não tem vida naquilo. O Imperial lançou o Roberto Carlos, o Erasmo Carlos e o Tim Maia, não preciso dizer mais nada. Ele era um cara esperto e se deu bem em tudo que fez, foi importante na música brasileira moderna e era um personagem interessante, um falso vilão, ele dizia “prefiro ser vaiado numa Mercedes que ser aplaudido num ônibus”. O Faustão acho um ótimo sujeito, um grande apresentador para o que é ali. Achava mais engraçado quando era do Perdidos da Noite, conheci o Faustão quando ele era repórter de campo, aquele que entrevistava o jogador na saída do jogo, era hilariante. O problema é que quando você quer atingir muita gente, tem que nivelar por baixo. É um problema. É uma opção, né?

Li que você, depois dos 60, anda curiosíssimo e animado a beça. Para onde você anda direcionando essa curiosidade e animação?

Para o trabalho, para os novos projetos e, é claro, para a família e amigos queridos. E continuo ligado à música de algumas formas, com o programa Sintonia Fina, que agora vai ter em Curitiba também e está no Brasil inteiro. Todo dia tem um artista novo, isso me dá uma grande animação. Sempre fui curioso, não tenho preconceito, sou novidadeiro, gosto de ouvir, não sou bobo também, porque para me enganar é difícil. Tenho 63 anos dos quais pelo menos uns 50 vivendo a música intensamente. Mas sou aberto, sempre fui. Falo dos artistas porque acho que alguém tem que fazer esse papel. Mas é claro que corro riscos, muita gente não deve concordar, dizer que tal negócio é ruim, que devo estar meio maluco… Mas digo o que sinto, sou sincero e incorruptível, por isso as pessoas confiam em mim. O cara pode não concordar com a minha opinião, mas você nunca vai ouvir alguém falar: “ah, ele é um picareta”. Podem dizer: “ah, o cara tá maluco, tá doidão, tá velho e tudo, mas ele é honesto”. Entendeu? E é do ramo. Então continuo fazendo esse papel.

Quais são seus próximos projetos?

Vou me dedicar agora ao cinema, fazendo o roteiro de Noites Tropicais, documentário, e Bandidos e Mocinhas, que vai virar filme da LC Barreto com Luana Piovani no papel da delegada Marlene. Estão fazendo o roteiro e tal, não sei direito porque é o Bruno Barreto que está produzindo e confio muito nele. Mas acho que o meu melhor livro, que queria que ele fizesse, é o Ao Som do Mar e à Luz do Céu Profundo, um romance que se passa em 1960, no Rio. Espero que a gente venha a filmar logo esse. E também pretendo lançar, mais pro final do ano, um CD só com músicas minhas, mas com uma nova roupagem, cantadas por gente boa e nova na praça.

*Publicada na revista TopView entre 2007 e 2009.

O primeiro a gente nunca esquece: entrevista com Washington Olivetto

O publicitário Washington Olivetto lança o livro O Primeiro a Gente Nunca Esquece, projeto que reúne a história de uma das mais celebradas campanhas publicitárias brasileiras e textos de outros autores que utilizaram o mesmo conceito.

Mais do que uma peça íntima que destaca a vaidade feminina, o sutiã foi imortalizado historicamente quando algumas mulheres resolveram queimá-lo em praça pública, nos anos 60, como um ato que desafiava a repressão masculina. No Brasil, a simbologia do sutiã faz parte da cultura popular também pela peça publicitária O Primeiro Sutiã a Gente Nunca Esquece, criada pelo publicitário Washington Olivetto, em 1987, para a marca Valisère, que mostrava na televisão o deslumbramento de uma menina ao ganhar seu primeiro sutiã. Passados 21 anos, Olivetto resolveu relembrar uma das campanhas mais premiadas da história da propaganda mundial com o lançamento do livro O Primeiro a Gente Nunca Esquece, pela Editora Planeta.

Mais que um relato sobre como nasceu o conceito, como a equipe trabalhou para conseguir um resultado tão delicado e os motivos que fizeram o filme entrar para a história, o projeto reúne algumas das mais destacadas narrativas que se apropriaram da expressão “o primeiro a gente nunca esquece”. O livro contém textos de Arnaldo Jabor, Marcos Sá Corrêa, Mário Prata, Tutty Vasques, Xico Sá, entre outros, que utilizaram a frase para falar sobre política, sociedade, futebol, culinária, sexo e moda. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, escreve o posfácio, no qual conta como Olivetto o convenceu a veicular um comercial de 90 segundos durante o programa Fantástico – algo incomum na publicidade acostumada a passar mensagens em apenas 30 segundos. A obra, em edição luxuosa, traz Patrícia Lucchesi, a atriz do comercial na época com 11 anos, em foto inédita e uma alça de sutiã cor-de-rosa como marcador de página.

Para falar sobre o lançamento e também sobre as mudanças culturais e comportamentais relativas à vaidade na sociedade brasileira entrevistamos Washington Olivetto, diretor de criação e presidente da agência publicitária W/Brasil. Por e-mail, ele comentou as transformações que observa, falou sobre o narcisismo contemporâneo e sobre quando sua vaidade pessoal é abastecida.

Como o senhor vê as mudanças no conceito de vaidade desde que criou a peça publicitária do sutiã Valisère?

O comercial “O Primeiro Valisère a Gente Nunca Esquece” foi criado e veiculado pela primeira vez em 1987, portanto está completando neste ano sua maioridade oficial, 21 anos. Foi um filme feito para seduzir as mulheres que encantou também os homens e acabou entrando para a história da comunicação mundial, merecendo até mesmo ser documentado nesse livro recém-publicado. Sem dúvida nenhuma a vaidade já existia há 21 anos, como sempre existiu, mas era menos explícita. O filme narra a transição da personagem de menina à mulher, momento em que a vaidade certamente desabrocha. E faz isso com uma delicadeza e sutileza coerentes com a época em que foi criado e produzido. Um tempo diferente do de hoje, quando, muitas vezes, a vaidade está atrelada à vulgaridade. Esse meu comentário não é uma crítica nem um julgamento moral, apenas uma constatação.

Se o senhor recebesse o mesmo briefing hoje, como criaria a peça?

Nos dias de hoje, o filme poderia manter o mesmo conceito. Mas, esteticamente falando, teria algumas diferenças. Certamente, a menina não estaria num clube na cena inicial, mas, numa academia de ginástica, ambiente hoje tão presente no nosso dia-a-dia. Seus cabelos e roupas seriam diferentes, possivelmente um pouco menos discretos e um tanto mais ousados. Seu quarto, levemente menos romântico e mais tecnológico, provavelmente com a presença de elementos como um computador e uma TV de plasma. E, na cena final, em vez de esconder os seios com os livros (fugindo, assim, do olhar do garoto), na versão dos dias de hoje, ela, atrevidamente, talvez puxasse um pouquinho o zíper da blusa pra baixo, deixando à mostra mais um tantinho dos seios com o sutiã. São modificações simples que colocariam o filme esteticamente no contexto social da atualidade. A vaidade, na época da criação da campanha, era mais sutil e recatada. Suave como a iluminação do filme.

Peças íntimas femininas possuem a mesma simbologia de sensualidade e vaidade hoje em dia que na época da criação daquela campanha?

Peças íntimas femininas tinham, têm e sempre terão a simbologia da sensualidade e da vaidade. Mas essa simbologia se alterna de acordo com as características do quadro social. Às vezes, fica mais recatada, às vezes, mais agressiva. Essa alternância ocorre particularmente no universo da moda, que é cíclica, se inventa e se reinventa.

O psicanalista Contardo Calligaris comentou certa vez, sobre o “narcisismo contemporâneo” da sociedade, que seria a compulsão por ter coisas. Qual o seu pensamento sobre isso?

Concordo com a análise do Contardo Calligaris para este momento, mas começo a sentir certo cansaço (particularmente nos formadores de opinião intelectuais) desse narcisismo contemporâneo, muitas vezes atrelado a uma vulgaridade extrema. A idéia do Andy Warhol de que, no futuro, todos seriam famosos por 15 minutos se transformou em “nos anos 2000, todos serão vulgares por algumas horas”. Esse comportamento está atingindo os seus estertores e possivelmente em pouco tempo teremos uma onda de revitalização da não vulgaridade e uma baixada de bola do tal narcisismo contemporâneo.

O senhor acha que o consumo é onde a vaidade humana mais se manifesta?

Sem dúvida, porque, na verdade, a maior parte das pessoas não consome produtos. Consome os sonhos e as ambições que os produtos simbolizam.

Trabalhar com publicidade há anos o tornaram experiente quando o assunto é lidar com a vaidade ou com a egolatria das pessoas?

Lidar com a vaidade e a egolatria das pessoas faz parte da atividade de qualquer publicitário. Por isso mesmo, é importante saber olhar para as coisas com olhar crítico. A vaidade, quando bem exercida, pode ser uma mola propulsora, um elemento de motivação para boas realizações. Quando exacerbada e descabida, vira uma espécie de doença.

A publicidade trabalha com aspectos sociológicos e mercadológicos e é colocada, algumas vezes, como culpada pelo excesso de consumo. Como o senhor analisa o fato de a publicidade trabalhar com a vaidade dos consumidores?

A publicidade é criada e aprovada por seres humanos. Quanto melhores forem esses seres humanos, melhor será a publicidade. Faz parte das características de um bom profissional de publicidade exigir ser levado a sério, mas jamais se levar a sério. Ter grande capacidade de rir de si próprio. Ser informado e desenvolver fortemente o seu intuitivo. Da soma desses fatores com muito trabalho é que um profissional de publicidade pode extrair um produto final sério e conseqüente, capaz de cumprir suas funções obrigatórias de vender produtos e construir marcas, mas com uma ambição ainda mais nobre: entrar para a cultura popular do país. Quem consegue trabalhar assim não tem nenhum motivo para sentir complexo de culpa, mesmo utilizando no seu trabalho elementos tão delicados e perigosos como a vaidade humana.

O senhor acredita na idéia de que quando uma pessoa assiste ao comercial de um carro, por exemplo, acha que ao adquiri-lo vai ter o biotipo do modelo que faz o comercial, a mulher que o acompanha e por aí vai?

As pessoas não são ingênuas a esse ponto. E mesmo os menos dotados intelectual ou financeiramente são, no mínimo, sensíveis e críticos. Por isso, é fundamental criar mensagens publicitárias que respeitem a inteligência dos consumidores. E deixar o julgamento final a cargo deles. Não podemos ser paternalistas com relação aos consumidores. Não podemos decidir o que eles devem ou não devem ver. E muito menos tratá-los como idiotas, coisa que eles decididamente não são. Publicidade bem-feita e de qualidade pode até mesmo ajudar a formar consumidores mais lúcidos e conscientes.

Alguns pensadores da sociedade contemporânea afirmam que temos necessidade de construir e mostrar nossa imagem como gostaríamos que ela fosse. O senhor concorda?

Essa afirmação não é uma regra, não pode ser generalizada, mas merece ser analisada. Imagens idealizadas (dentro e fora do universo de consumo) sempre fizeram parte das características do ser humano. Alguns conseguem tirar bom proveito disso. Outros se transformam em vítimas de si próprios.

Em que situações o senhor acredita que a sua vaidade se manifesta?

Prefiro minha vaidade mais abastecida que manifestada. Minha vaidade é abastecida quando fazemos trabalhos de boa qualidade. Abastecida por mim mesmo, que me sinto gratificado pelo trabalho. E abastecida pelo reconhecimento dos outros, que também é sempre gratificante. Talvez devido à experiência de anos nesta minha atividade (na qual o ego é lustrado e massacrado cotidianamente), não sinto grande necessidade de manifestar a vaidade abastecida. O prazer interiorizado me basta.

O senhor acredita em medida certa para a vaidade?

Sim, a medida do bom senso. Para exercer essa medida, saber rir de si próprio continua sendo o melhor remédio.

Ganhar prêmios publicitários tem ligação com a vaidade?

Tem ligação com a vaidade, mas em pessoas e profissionais relativamente normais (de perto, ninguém é normal). Isso ocorre mais no início da carreira, quando os prêmios parecem mais relevantes e ajudam a eliminar certas inseguranças. Com o passar do tempo, os melhores profissionais percebem que o melhor prêmio, na verdade, é o reconhecimento do público. Criar algo que cai na cultura popular é um prêmio maior do que todos os prêmios de todos os concursos e festivais somados.

O senhor é conselheiro da Berlin School of Creative Leadership, escola que “busca formar líderes fora de série, com enorme capacidade de enxergar o outro lado das coisas”, em suas palavras. Quais são as diretrizes ideais para a percepção do outro lado das coisas?

O não preconceito com a informação: toda e qualquer informação, independentemente do seu status, é válida e necessária. O treinamento e o aperfeiçoamento do intuitivo (costumo dizer que os grandes profissionais normalmente têm o intuitivo de “uma comitiva de mulheres”). A curiosidade a respeito de tudo. Uma enorme vontade de trabalhar. E alguma sorte. Esses, a meu ver, são alguns componentes fundamentais para quem pretende enxergar o outro lado das coisas.

O que vale mais: a forma ou o conteúdo?

O bom conteúdo expresso na forma adequada.

*Publicada na revista TopView entre 2007 e 2009.

Entrevista com Zuenir Ventura

O que você inveja?

Ele é o autor da Inveja. Decorreu sobre o assunto em livro, escancarou com as mazelas e disse que sim, todos sofremos de inveja. Não somente a inveja fatídica, aquela que levou Caim a matar Abel, mas inveja das coisas mais fúteis e imperceptíveis. A inveja do carro do vizinho, a inveja do vestido da amiga. Deixa clara a diferença entre cobiça – querer o quê o outro tem -, e inveja – querer que o outro não tenha. Zuenir comparou o mal secreto com a doença considerada o mal do século.  Pesquisou, entrevistou e relatou inúmeros fatos sobre o quanto somos invejosos e transcreveu as sensações de uma pessoa com câncer, hoje curado. A gula é confessável, a avareza é escancarada, assim como a ira. A soberba já se adaptou ao mundo. Luxúria nem se fala. E a preguiça, ainda é considerada pecado? Mas a inveja é inconfessável. No alto dos seus 70 anos, o carioca de Ipanema, consagrado como jornalista e escritor, também sofre de inveja.

Seu último livro foi lançado em 1999. Mas Zuenir não parou de produzir durante este tempo de ócio literário. Suas colunas semanais de O Globo são sempre irreverentes e, apesar dos inúmeros motivos que temos para acreditar que ‘o país não tem mais jeito’, ele continua um incansável otimista. Adepto as novas tecnologias, apesar da internet já ter publicado erroneamente sua morte, é um homem do presente. Analisa o passado sem a influência de uma nostalgia exagerada e acredita que vivemos em uma época que só vai poder ser avaliada à distância.

Bacharel e licenciado em línguas neolatinas, Zuenir Ventura ingressou na área como arquivista. Em 1960 conseguiu uma bolsa de estudos para o Centro de Formação de Jornalista de Paris. De volta ao Brasil, exerceu vários cargos em diversos veículos. Em 1969, realizou para a Editora Abril uma série de 12 reportagens sobre os Anos 60 – a década que mudou tudo, posteriormente publicada em livro. Em 1988, laçou 1968, o Ano que não terminou, considerado o documento mais revelador sobre a geração que pretendia salvar o Brasil das trevas. Além de vender mais de 200 mil exemplares, serviu de inspiração para a minisérie Os anos rebeldes, produzida pela rede Globo. Em 1989, publicou no Jornal do Brasil a série de reportagens O Acre de Chico Mendes, que lhe valeu os prêmios Esso de Jornalismo e Vladmir Herzog. Em 1994, lançou Cidade Partida, um relato sobre a fronteira entre pobreza e a riqueza carioca. Em 1998 lançou Inveja – Mal Secreto, que já vendeu mais de 80 mil exemplares. Atualmente escreve para a revista Época, jornal O Globo e para o site no.com.

Qual é o balanço que você faz do jornalismo desde quando começou até hoje?

Não sou um nostálgico, daqueles velhos que fala ‘ah, no meu tempo.’ Acho que quando se faz uma comparação entre o jornalismo de hoje e o feito do fim dos anos 50, quando comecei, têm alguns pontos positivos. O jornalismo naquela época permitia uma liberdade técnica, não falo em liberdade política, mas liberdade técnica maior. Era mais boêmio, não tinha hora pra fechar, não tinha a imposição industrial de hoje. Por outro lado era menos profissional. A profissão era maltratada, você não tinha hora para trabalhar, não tinha hora para chegar, nem para sair. Se dizia o seguinte: quem tem hora é funcionário público. Com isso as empresas exploravam a gente. Ganhava-se mal, o que permitia uma série de distorções. Havia uma promiscuidade muito grande entre fontes e o repórter. Mas tinha uma coisa simpática para você trabalhar, porque a gente saia de lá e ia para o bar beber. Eram todos engajados politicamente, pertenciam a algum partido ou tinham interesse partidário. Comecei na Tribuna da Imprensa, que era o jornal do Carlos Lacerda. A Última Hora era ligado ao Getúlio, o Diário Carioca era ligado ao Juscelino. Olhando assim, com distância dos acontecimentos, as pessoas às vezes acham que naquela época se tinha uma liberdade política maior. E não tinha. Você se submetia a orientação de determinado jornal. É assim que vejo as coisas negativas daquela época.

Mas a distância dos fatos sempre nos faz idealizar o passado.

É verdade. Hoje se tem um jornalismo industrializado, com vantagens e desvantagens. Tem um jornalismo que reconhece a profissão como profissão. Tem uma empresa que é mais sólida economicamente. A princípio, tende a ser mais independente economicamente. E, sobretudo, um jornalismo que pretende, nem sempre consegue, separar o que é interesse de opinião. Teoricamente você sai para fazer matéria e escreve aquilo que viu, sem injunção da direção. Isso em tese, porque há uma série de exceções. Mas em uma empresa moderna, economicamente independente, há liberdade de narrar aquilo que se viu. Hoje tem uma baixa de qualidade de texto da imprensa em geral. Os textos vão diretos para a impressora e isso faz com que se veja comumente muitos erros de português. Não existe mais cuidado com a palavra. Acho que existe uma crise da palavra escrita. A língua é muito maltratada em lugares em que deveria reinar absoluta. E esse lugar é o jornalismo.

Você não acha que a internet ressalta a quanto é defasado o jornal impresso, já que ele não situa mais o leitor no contexto dos acontecimentos?

Os jornais insistem em cumprir uma missão que é a de revelar o acontecimento. Comecei em uma época em que o jornal dava a notícia. O jornal dizia assim: caiu um avião matando 200 pessoas. Hoje, não se pode dar mais essa manchete, porque no dia seguinte, isso saiu 10 vezes na televisão. Com a internet você até chega a ver o momento em que cai. Acho que os jornais ainda insistem em dar a notícia, quando deveria trabalhar com a explicação. O melhor jornal hoje no Brasil seria feito com explicação. Dentro da explicação quero dizer opinião. A gente é bombardeado por uma quantidade muito grande de informação. E informação em excesso é ruído, é entropia. É curioso porque venho de um tempo, anos 60, em que você tinha carência de informação. Você morria de fome de informação, hoje se morre de indigestão. É até uma forma de censura por excesso de informação. O leitor, o espectador, fica sem saber o que na verdade está acontecendo. Ele é bombardeado com uma quantidade de informação que não pode absorver. Isso é um problema do jornalismo e isso é uma forma de censura. Então quando os jovens me falam, ah não existe censura como nos anos 60, daquela forma não existe. Hoje escrevo e não tenho restrição nenhuma. As restrições que tenho são minhas, não vou usar uma linguagem chula, não vou xingar as pessoas, por bom senso. Mas isso é padrão de qualidade. Agora, existe uma outra forma de censura para qual a gente não atenta muito, que é o excesso de informação.

O jornalismo hoje é padronizado. Você acha que isso agrada o consumidor?

O que está acontecendo é o seguinte: o jornalismo de televisão é tecnicamente muito bom. Eles descobrem tudo, dificilmente existe alguma coisa que a televisão não cubra. E tem a internet. O jornal não acompanhou esse salto que a realidade deu. Você não pode trabalhar com categorias como sendo uma coisa sagrada. Há de se adaptar ao sistema. A função de informação passou para outros veículos. A internet é a realidade, o acontecimento em tempo real. Claro, que isso também já produziu uma série de distorções. Eu mesmo já fui morto pela internet.

O que aconteceu aquela vez?

Resumindo a história – que tem um lado muito engraçado, mas tem um lado muito desagradável porque o meu filho conviveu com essa notícia durante duas horas, imagine o estado dele, achou que eu tinha morrido mesmo -, alguém ligou num antigo telefone meu e uma mulher maluca atendeu, meio chateada com o número de telefonemas e disse:  ‘o Zuenir morreu, teve um acidente na Lagoa meio dia e ele morreu as quatro da tarde’. Uma agência de notícia não apurou devidamente e botou na internet: morre o escritor Zuenir Ventura. Isso foi numa sexta-feira. A notícia terminava assim: sua última crônica no O Globo sai amanhã.

Mas isso não é problema da internet, é de verificação dos fatos.

Isso é irresponsabilidade. Escrevi reclamando que nem flores para o meu enterro tinham mandado, nem desculpas tinham pedido. Mas o que queria dizer é o seguinte: claro, o problema não é nem da internet é da irresponsabilidade, mas a internet, com essa correria e competição, era um furo de reportagem. Isso foi na Agência Estado e eles não queriam levar o furo. A internet coloca situações com essa velocidade, esse tempo vertiginoso que a gente vive, parecidas com essa. Não é culpa da internet, mas ela propicia muito mais essa vertiginosa correria atrás de um furo e a paranóia de não ser furado.

Como você analisa a situação do Brasil atualmente?

A gente está no meio de um furacão. Não se sabe o que vai acontecer porque esse país é muito imprevisível. Ninguém previu o impeachment do Collor. No meio do quadro atual, que revolve nosso estômago porque é um espetáculo de vísceras aparentes, tem um lado positivo que a gente não vê muito quando está vivendo. Pode ser que essa crise, crise também é crescimento, tenha um lado positivo. Quem sabe a gente esteja nesse momento espremendo um carnegão de um furúnculo – desculpe-me pela comparação desagradável. Embora seja muito desagradável de ver em qualquer organismo essa cena, ela acaba sendo mais saudável. Quem sabe a gente não esteja fazendo um processo catártico. O país tem que fazer um processo de purgação, pra continuar as minhas comparações escatológicas. Pode ser e quero crer. Uma parte de mim quer acreditar que esse processo que o país está vivendo é um processo de exposição de vísceras, um processo doloroso de nervo exposto, mas mais saudável do que você tentar tamponar. Outra parte de mim pergunta o seguinte: será que a razão cínica no final não vai vencer?

Em algum momento você acreditou que o Brasil ia dar certo?

Vivi o governo do Juscelino. Hoje é visto como um governo muito bom, democrático, 50 anos em 5, uma autoconfiança muito grande, a auto-estima do país era muito grande. Foi o governo que o Brasil ganhou a Copa de 58, tinha nesse país Pelé, Garrincha, bossa nova nascendo, o Cinema Novo, o teatro de Arena, Brasília sendo construída. No próprio jornalismo tinha uma efervescência muito grande. E naquele momento a gente reclamava muito do Juscelino. Acho que à distância ele é muito mitificado. Porque aconteceram coisa péssimas como, por exemplo, acabar com a ferrovia no Brasil. O que aconteceu foi um crime. Realmente abriu estrada, mas precisava acabar? Hoje as ferrovias são um meio de transporte mais eficiente, moderno, econômico e tal. Quando a gente está vivendo o processo, perde-se a distância. O balanço desse governo Fernando Henrique, a justiça desse governo será feita pela história. Acho que o Fernando Henrique é melhor do que esse governo dele. Ele cometeu um engano muito grande que foi se aliar em função da governabilidade. Mas ele se aliou com o que há de pior nesse país e a crise toda que aconteceu no Senado, foi uma crise da base de sustentação dele. Não foi a oposição que produziu aquilo, foi o próprio governo dele. A verdade é que há uma complacência geral na política, do poder todo em geral, com corrupção, com tudo.

Você votou no Fernando Henrique?

Não. Votei no Lula.

Você acredita que a esquerda é realmente existente no Brasil ou acha que é tudo misturado?

Os partidos são muito pouco representativos. Não tenho partido, como acho que jornalista não deve ter partido nenhum. Tenho uma simpatia ética pelo PT, apesar de ter críticas políticas ao PT. Sou pela alternativa, pela alternância do poder, acho que seria legal que viesse um governo que fosse de esquerda para alternar, porque esse governo é um governo de direita. Por mais que o Fernando Henrique diga que não é de direita, é sim. Quando eu estava na França, assisti a eleição de prefeito municipal e vi na televisão o cara dizendo assim: ‘nós, da direita’. Pensei que bom viver em um país em que a direita se diz de direita com orgulho. Nesse país não há direita. O cara não diz sou de direita, diz sou do centro esquerda. Tem alguma coisa errada, é preciso uma definição ideológica. Que as forças de direita se assumam como direita, que as forças de esquerda se assumam como esquerda. No Brasil há uma ambigüidade, é tudo meio assim, pode ser, pode não ser. Os políticos mudam muito de partido e isso também não faz muita diferença.

E é um defeito do cidadão também não cobrar as ações partidárias.

É muito fácil a gente repassar nossas responsabilidades. Agora, pergunte em uma roda: em quem você votou para vereador? Em geral as pessoas já esqueceram. Por quê? Porque votou, acabou. Não cobra, não pega o deputado no restaurante ou na rua, e diz: ‘cara, por que você votou daquele jeito? Por que você fez isso?’ Quando a opinião pública começa a se levantar, é que obriga-se a acontecer alguma coisa. Foi a opinião pública que fez o impeachment do Collor. É importante, a gente sabe que é importante.

O que o você acha que proporciona essa situação favorável aos políticos?

Acho que é a sensação de impunidade. Você vê a história do Jader Barbalho. O que tem de errado, de rastro, de pista naquilo tudo. E isso não é porque são corruptos amadores, não. É porque a sensação de impunidade é muito grande. É nítida a arrogância de todos eles. É um primor de arrogância. E por que isso? Porque se acha que não vai acontecer nada. A gente sabe que hoje que o que descaracteriza o Brasil realmente é a impunidade. Acima de um determinado nível de poder as coisas não acontecem ou é muito difícil de acontecer. É mais fácil você pegar um bandido qualquer, enquadrar, condenar, prender, do que fazer isso com um colarinho branco. Isso é da história do Brasil. O código penal é para favorecer o branco e o rico. A composição étnica das cadeias é de negros e mulatos. E daí se diz que o negro e o mulato é que são criminosos, mas não é. É que eles são sempre condenados. Pode ser condenado por roubar um doce numa vitrine, num balcão de uma padaria, por ser um ladrão de galinhas…

O Arnaldo Jabor disse que queria ver uma ladrão de galinhas chorando na delegacia, pedindo desculpas, dizendo que errou, mas se arrependeu e não ser preso.

A verdade é a seguinte: eles são muito competentes no roubo, os níveis de corrupção aqui são altíssimos. Saí de férias e a taxa de roubo, de desvio de corrupção, era 169 milhões. Voltei, tinha um outro escândalo, que era 10 vezes maior, o da Sudan. Depois vem o da Sudene que é 10 vezes maior. Isso não tem nem limite. Não tem nem aquela história, ‘vamos estabelecer um limite para a corrupção’. Olha o negócio da mulher do Jader Barbalho. Ele tem um patrimônio de 200 milhões. O cara era pobre, paupérrimo. E uma criação de rã é importante para a Amazônia? Pro Brasil? É muito dinheiro envolvido, é evidente que tem sacanagem. Se essa coisa não estoura por acaso, não íamos saber nunca. Mas tenho que deixar claro que isso aí acontece há tempos.

Mesmo assim, algumas pessoas tendem a falar que quando existia a ditadura era melhor…

Algumas pessoas dizem isso e é uma loucura. É que hoje isso é escancarado. O que não é novidade é que esse país está roubando. Sempre esteve. Na época da ditadura militar provavelmente se roubava mais porque era um grupo menor roubando. Roubando acobertado pela censura. Ai de nós se fizéssemos uma denúncia. É bom deixar claro para aqueles que têm nostalgia da ditadura que isso não é novidade não.

Você que viveu em uma época efervescente culturalmente como vê a cultura da bundinha, do tapinha, essas coisas?

Não acho que no meu tempo era melhor. Sou do presente. Vivo o meu presente, acho que o presente é melhor que o passado. Gosto do hoje, não vivo voltado pra trás. Não tenho nada para renegar do meu passado, não dei um mal passo, não é ‘o meu passado me condena’. Mas curto mais o meu presente. Ouve uma efervescência muito grande naquela época. Havia muito movimento, muitos grupos, muitas gerações. Vou dizer uma coisa que contraria o que disse agora. Quando se fala em geração, pensa-se numa coisa só. Hoje mudou o país, mudou o mundo, inclusive o conceito de geração. Você não tem hoje uma geração, você tem várias tribos. Você tem a tribo dos funkeiros, dos universitários, dos pagodeiros. O país, o mundo, reflete tudo, tanto que a gente diz a juventude de hoje. Mas que juventude? É diferente. Hoje você tem várias gerações. Conceito de geração não é mais aquele de uma coisa uniforme. Tem uma fragmentação, tem várias tribos urbanas.

Por que hoje não há mais uma ideologia comum?

Não tem mais uma hegemonia cultural como se tinha antes. Tem a presença da mídia e sobretudo do consumo. O consumo tem influência junto ao jornalismo. A gente procura fazer um jornalismo espetáculo. Uma política de espetáculo. Imagine o show bizz, imagine a música, é muito mais. Acho que houve um rebaixamento, um nivelamento. Na mídia de entretenimento os produtos culturais são descartáveis e de consumo imediato. Numa hora é a bundinha, na outra o tapinha, na outra a dancinha da garrafa. A maioria das vezes não tem duração nenhuma, não tem perenidade. Isso é jogado dentro da casa da gente a qualquer momento, é predominante, é hegemônico. A cultura do Brasil é isso. Mas ao mesmo tempo, viajei para Goiás e vi que tem uma diversidade nesse país. Vi um espetáculo na Semana Santa, chama A Procissão do Fogaréu. É uma coisa magnífica, numa cidade chamada Goiás Velho, que é do barroco. A gente conhece Ouro Preto, Tiradentes e esquece que tem lá uma cidadezinha, um barroco mais pobre, mas é uma cidade linda. E com uma manifestação cultural desse tipo. O problema é que hoje a mídia não dá vez a essas manifestações. É o que digo sempre, não é que falte, é que aparece muito mais as manifestações privilegiadas pelo consumo. Lançar para ganhar dinheiro. Isso realmente produziu um nivelamento por baixo nas manifestações culturais e de entretenimento do show bizz. Não é por falta de criatividade, não falta isso no país. O cinema tem produções de nível internacional. Nossa música é muito boa. Hoje temos um Zeca Baleiro, uma Adriana Calcanhoto. Não quero nem ficar citando nomes, porque você cita 10 e vai esquecer cinco maravilhosos. As pessoas acham que houve um nivelamento por baixo no panorama que é mais visível, mas isso não significa que outras manifestações não existem. Eles apenas não tem o mesmo espaço na mídia. O Zeca Baleiro não tem o mesmo espaço na mídia que um tapinha na bunda não dói.

Houve nivelamento, mas por exemplo, o livro Inveja vendeu bem?

Muito bem.

E é um livro que não nivela por baixo, então há um crescimento significativo deste mercado.

O perigo do Brasil é que as pessoas tendem a analisá-lo com categorias maniqueistas ou cartesianas. E o Brasil não é isso ou aquilo. O Brasil é isso e aquilo. Ao mesmo tempo tem isso que a gente constatou, tem manifestações de saúde cultural. Toda a coleção (Plenos Pecados) é de alto nível. Foi muito bem comercialmente. Faz com que você tenha espaço para manifestações culturais de qualidade, não só de quantidade. O país é isso, não dá para olhar por um viés só. Há um tempo atrás um jornal francês veio me entrevistar e a primeira pergunta que me colocaram foi a seguinte: ‘se o Brasil é um país cordial como você diz, como é que se explica tanta violência? Agora, se é um país violento, como é que se explica tanta joie de vivre, ele usou essa expressão, que vejo nas ruas.’ Eu disse, porque é as duas coisa. O Brasil é um país cordial, mas é um país violento. Ele não é uma coisa ou outra, em todos os níveis. Não é à toa que nosso símbolo é um mulato e o símbolo culinário é a feijoada.

Em várias crônicas você se refere a violência do Rio de Janeiro. Você acha que ela condiz com a imagem que se passa da cidade?

O Rio está muito violento. Sou um apaixonado pelo Rio, tenho uma relação com o Rio de amor e ódio, como toda paixão. A minha relação com o Rio dificilmente eu viveria com uma outra cidade. Escrevi isso quando voltei de Paris de férias porque tive uma crise. Vi os jornais antigos, jornais de quando eu estava fora, aquela desgraça toda e pensei: o quê faz com que eu não tenha vontade de mudar daqui? Gosto do Rio. Mas a vida está sujeita ao perigo. Mas é evidente que não é só isso, porque não sou masoquista. Às vezes a imagem, quando você vê o acontecimento narrado pela televisão – e ela tem o poder de amplificar tudo, tem uma coisa de hiperbolização -, parece ser pior do que é. Nunca fui assaltado no Rio. Para não mentir, fui uma vez, mas estava com sete reais no bolso. Mas a cidade não é só isso, ela tem uma energia positiva muito forte. O que está acontecendo é que a violência foi se acumulando ao longo dos anos e explodiu de forma mais visível. Até porque o Rio é uma cidade aberta, você vê tudo que acontece. Escancarada para o bem e para o mal. Exibe as belezas e as mazelas. Tanto que cada bairro nobre no Rio tem uma favela. Em São Paulo fui notar a violência mais recentemente. No Rio a periferia é no centro, São Paulo a periferia é na periferia. O problema é que as cidades estão vivendo um processo no qual a periferia está fechando o cerco.

E está atingindo cada vez mais a classe média, o que justifica isso tudo estar mais exposto.

E daí a paranóia é geral. Porque, o que é o problema da bala perdida no Rio. A elite carioca fez tudo para não ver a miséria. Quando começou a violência ela começou a se cercar, botou grade, criou exércitos particulares, serviços de segurança. E tudo isso ficou vulnerável a violência. Algumas pessoas se mudam, alguns foram para Miami. Mas se você quer continuar no Rio tem que integrar as duas cidades, a cidade partida. Essa integração social tem que ser feita. O apartheid não dá certo em lugar nenhum do mundo. Seja o racial, seja o social. O Rio, como o Brasil, tem um apartheid social. A miséria você não vence dando tiro. Essa é a questão que tem que colocar. Não é uma solução para daqui a pouco, é um processo a longo prazo. Como foi o processo de acumulação dessa miséria toda e dessa violência toda, que é um processo de pelo menos 100 anos, mais até. Agora, é preciso começar já. O que há de positivo é que hoje se tem consciência disso, que se vive em um momento difícil e que a sociedade também tem que fazer alguma coisa. Não se pode terceirizar tudo para o governo, porque a bala perdida pode te atingir também. Ela não tem mais direção certa. Hoje ninguém é invulnerável a violência. Sabe-se que não é com violência que se vai acabar com violência.

Mudando de assunto, o livro Inveja foi um livro encomendado?

Foi um livro encomendado e é muito engraçado isso. Fui chamado pelo Roberto Feith, eis a pessoa, e me disseram que queriam lançar uma coletânea sobre os sete pecados capitais. Te confesso que achava que não ia fazer o mínimo sucesso, os pecados capitais a essa altura. Imagina se alguém vai ler. Era uma boa proposta e disseram para eu escolher o pecado que queria. Na hora falei: quero a inveja. Não me arrependi porque é realmente o pecado mais complexo.

É engraçado porque você se refere a várias situações no livro em que a gente nem percebe o quanto é invejoso. A inveja tem seu lado bom?

No livro defendo que não. Pelo seguinte, a inveja é um sentimento tão ruim, desagradável, depressiva, que busca formas de atenuar isso. Quando você diz assim:  morro de inveja de você, dos seus cabelos, da sua beleza, isso é uma declaração de admiração. Isso não é inveja. Tanto que não existe inveja na relação do fã com o seu ídolo. Porque a inveja é inconfessável. Aquela inveja mesmo, autêntica, que você realmente não quer que o outro tenha, não se confessa porque é um sentimento do qual se tem vergonha. E acontece junto aos próximos, aos amigos, o cara que trabalha do seu lado, o rival, o seu companheiro de trabalho, tanto que o símbolo da inveja é uma serpente. Porque a serpente só morde quem está perto. É um pouco isso.

Os personagens são todos fictícios?

Tem personagens que aparecem integralmente como são, outros que aparecem misturando ficção com realidade. Outros estão disfarçados, porque não poderia usar. É uma mistura de ficção e não ficção.

Você passou realmente por um problema de saúde enquanto escrevia o livro?

Costumo dizer que infelizmente aquilo é verdade. Falo hoje tranqüilamente porque estou bem, curado, graças a Deus. Foi importante escrever porque acabei descobrindo que a inveja e o câncer são muito parecidos. Primeiro porque não se gosta de confessar nenhum dos dois. Já reparou que ninguém fala câncer, fala ‘aquela doença’, tumor maligno. É realmente um choque porque você procura evitar isso, dizer isso é estigmatizante. Como a inveja é. Os dois são males incendiosos, males secretos. E sobretudo, tanto para um quanto para o outro, o primeiro passo na cura, é admitir que tem. Não dá para mascarar. É parar e dizer, sinto inveja dessa pessoa. Tem níveis de inveja. Você tem uma inveja que todo mundo tem, ou vai ter, como tem inveja patológica, aquela que leva à morte. Mas nem toda inveja é assim. Tenho minhas invejas. Cada um tem as suas invejas e administra aquilo de alguma maneira. Da mesma maneira o câncer, a melhor maneira de você lidar com o câncer, não propriamente curar embora ajude, é admitir que tem. O câncer foi uma coisa que me abalou muito. Eu tinha uma onipotência, meu pai morreu aos 97 anos, fiz 70. Essa doença é muito sacana.

Quais são seus próximos projetos?

Estou fazendo uma coluna para o site http://www.no.com.br . É engraçado porque sempre tive a maior má vontade, pensei que nunca íamos nos dar bem, eu e o computador. Acho o computador burro, a gente tem uma relação muito complicada. É uma revista ótima, que está fazendo um jornalismo primoroso, criativo e original. Eu já tinha iniciado, também, as negociações para um outro projeto que vai ser um documentário sobre Paulinho da Viola, que vou fazer com a Izabel Jaguaribe, que fez comigo, Um homem qualquer, da série “Seis histórias brasileiras”. Livro, na verdade teria que escrever um esse ano, mas ainda não sei exatamente que livro vou começar a escrever.

Dificulta ter que escrever sob encomenda?

Eu achava que complicava, mas a Inveja era um livro de encomenda. Quando eles encomendaram deram adiantamento. Quando surgiu o câncer, eu queria jogar tudo pro ar. Não tinha o menor interesse. Tanto que levei dois anos para acabar esse livro. Mas pensava o seguinte: já gastei esse dinheiro. Chegou uma hora que falei: ‘tenho que fazer esse livro.’ O Tom Jobim tem uma frase ótima sobre prazos, que diz assim: “a encomenda é nossa musa inspiradora”. É o que acaba obrigando você a escrever. Só acabei o livro, digo isso com a maior sinceridade, porque era encomenda. Tanto que como não tenho nada encomendado agora estou há dois anos sem fazer livro nenhum.

*Publicada na revista TopMagazine entre 2000 e 2004.

Vik para todos: entrevista com Vik Muniz

Ele é um dos artistas brasileiros contemporâneos mais conhecidos mundialmente. O paulista Vik Muniz resolveu se mandar para os Estados Unidos na década de 80, depois de se formar em publicidade, e entrar de cabeça no mundo as artes. Depois de passar por alguns empregos que de artísticos não tinham nada ele conseguiu o reconhecimento de sua obra e hoje tem trabalhos expostos no Metropolitan Museu, em Nova York, e no Reina Sofia, na Espanha, só para citar alguns museus de destaque. Em julho e agosto, duas galerias brasileiras recebem suas obras.

O artista Vicente José Muniz, o Vik Muniz, nascido em São Paulo em uma família classe média em 1961, filho de um garçom e de uma telefonista, provavelmente não esperava o que o destino reservou para ele quando, em 1983, resolveu deixar o Brasil e se mudar para Nova York. A idéia era abrir a mente no mundo das artes e o que aconteceu foi muito mais do que isso. A partir de 1988 Vik começou a produzir as séries fotográficas que lhe deram fama e liberdade. Trabalhando com materiais nada ortodoxos, ele conquistou críticos e público por onde passou. Açúcar, chocolate, macarrão, algodão, pó, terra e sucata são algumas das matérias-primas que compõem imagens sobre uma superfície, e então ele as fotografa. Em agosto, as galerias Fortes Vilaça e Paço das Artes, em São Paulo, recebem a exposição The Beautiful Earth (A Terra Linda), uma curadoria de várias séries recentes sobre a terra. Na entrevista que segue, cedida por e-mail, Vik Muniz fala sobre a memória presente em suas obras, a experimentação de materiais perecíveis, as referências, a ficção que é uma fotografia e a idéia de abrir um bar ao lado de seu pai, além de argumentar sobre a necessidade de todos terem acesso à arte.

O seu trabalho é uma investigação sobre temas da memória?
O meu trabalho investiga o mundo visual de forma geral e mais abrangente possível. Tenho a tendência de não me interessar tanto por aspectos particulares da visão quanto pela maneira como eles se relacionam. Memória e atenção são temas importantes e por isso recorrentes, porém são partes de uma estrutura mais complexa, de uma temática mais ambiciosa que é o tema da visão e da visualidade no mundo contemporâneo.

Como aconteceu a percepção de que materiais como açúcar, chocolate e macarrão poderiam fazer parte das suas obras?
A fotografia tem o poder de transmitir informação substancial. Uma foto de uma pintura, por exemplo, não só mostra o tema da obra como também o material usado para representá-lo. A foto de uma pintura, por condensar o material e a imagem em uma só superfície, transforma-se em um instrumento analítico, pois inspira o espectador a discernir gramaticalmente o ator. A tinta se transformando em paisagem, e o ator em personagem, constitui o momento sublime absoluto de toda a história da representação. Um momento extremamente mágico que nos escapa toda vez que olhamos para uma pintura ou desenho devido à atrofia intelectual imposta pelo consumo desenfreado de imagens. Um desenho a lápis é julgado pelo nível de veracidade que mantém em relação ao tema ou modelo, o mesmo desenho feito em melado, com formigas caminhando por cima, inspira o espectador a imaginar o processo e a escala, a pensar no desenho em vez de simplesmente olhar para ele. Quanto mais distante o material do tema, mais inspirador o engajamento entre o espectador e a imagem.

Você desenha as suas referências?
Procuro lidar com diversas imagens da forma mais geral e sintética possível e não alimentar preconceitos entre classes ou famílias de imagens. Sempre procuro trabalhar com o que o espectador está trazendo para o encontro com a imagem e, por isso, reconhecimento é algo muito importante em meu trabalho. Os temas acabam sendo um arquétipo, um ícone ou estereótipo, algo gasto, digerido e facilmente subestimado. Mas, quando observados com atenção, traz expectativas e se transforma em algo novo. Isso em parte é uma apropriação da retórica comercial, isto é, quero usar o veneno da publicidade para produzir uma vacina. Utilizo imagens sem nenhum preconceito, tudo depende de como respondo instintivamente a determinadas imagens. A lição de anatomia de Rembrandt é uma boa imagem, a cara do George Bush tentando sambar também. Às vezes desenho o que quero reproduzir, copio de um livro, vou ao museu desenhar ou faço de cabeça. Imagens são imagens, quero que o espectador parta disso para que a diferenciação entre uma imagem e outra passe a um nível mais amplo, mais sofisticado do que o temático.

O seu trabalho passa por fases de experimentação de materiais?

O bom de trabalhar em séries é que a gente se poupa do risco e da inconveniência de ter que dizer muita coisa de uma vez. Idéias podem ser exploradas com calma e concentração, na infinidade de nuances e ambigüidades que todo conceito propicia. Trabalho com vários materiais ao mesmo tempo e nunca encerro séries definitivamente. Se no futuro encontro alguma imagem que ficaria interessante em um material já utilizado, por que não fazer? Tento não calcular muito, as séries vão se extinguindo naturalmente.

Você é um artista que tenta aproximar a arte do maior número de pessoas. É isso mesmo?
Existe uma grande fenda separando o público de exposições de arte contemporânea e isso tem a ver com o fato de o mundo da arte ser uma estrutura demasiadamente pequena, com uma linguagem específica e demasiadamente tacanha pela sua ineficiência de comunicação com o exterior. Isso me faz pensar nestes vilarejos de imigrantes alemães do sul do Brasil, onde toda a população se comunica em nos dialetos pomerano ou plattdüütsch. Todo mundo morre de curiosidade de visitar estes lugares, mas nunca vai por medo de se sentir excluído. Uma grande obra de arte deve transcender barreiras espaciais, temporais ou lingüísticas. Deve se servir da universalidade dos sentidos e fomentar a cumplicidade entre as pessoas. O mundo da arte internacional cultiva, paranóico, o seu próprio dialeto obscuro e grande parte da produção artística acaba sendo elaborada com essa mesma linguagem acessível somente para os locais do vilarejo. O resultado deste provincianismo intelectual é a condenação do popular e o culto de um produto que seja fruto deste isolamento, que ajude a definir a identidade de seus membros, um fascismo onanista. É uma grande hipocrisia esta história de artista dizer que faz arte só para si mesmo. A arte deve ser inspirada em experiências extremamente pessoais, mas deve também ter a capacidade de transmitir estas experiências em um âmbito universal. Sou um artista: você me dá uma parede, um prego e um público que com certeza penduro uma obra ali.

Você comentou certa vez que a obra também é feita pelo espectador…
O artista deve respeitar a bagagem que o espectador traz ao encontro com a obra em um momento de profunda cumplicidade. Quando exposta, a obra pertence ao mundo e sua vida está ligada à diversidade das experiências que ela proporciona, assim como a formulação de novos critérios consensuais emergentes da experiência desses encontros no plano social e discursivo.

Qual a grande questão do Vik Muniz?

Por não acreditar em respostas muito abrangentes, nunca acreditei em grandes questões. O meu problema não é com a grande questão e sim com o número infinito de pequenas. Como enfatizar estes detalhes sem perder noção do todo? Como retratar este mundo tão multifacetado e holográfico, no qual memórias de filmes se fundem com sonhos sem perder o foco na condição humana que possibilita este meio ambiente?

Como é para um brasileiro de classe média ser reconhecido e ter obras expostas nos principais espaços mundiais?
Acho que se eu tivesse nascido na Suíça, de família rica, estaria feliz do mesmo jeito. Todo mundo gosta de ser bajulado pelo fruto de seu trabalho. Como estava dizendo, o mundo da arte é talvez o clube mais exclusivo do mundo. De centenas de milhares de pessoas que se formam todos os anos com sonhos de viver da arte, apenas alguns conseguem sobreviver exclusivamente trabalhando como artistas. Depois de vinte anos de corda bamba a vida fica mais fácil, você se pendura mais alto porque tem mais equilíbrio. O difícil é ficar em cima da corda os primeiros dez anos.

Seu trabalho é conhecido pelo fato de a matriz das obras ser perecível, certo?
Trabalho com coisas frágeis e mutáveis. Elas justificam a questão momentânea do ato fotográfico. Uma poética nostálgica, pois estes momentos-objetos envelhecem e estragam invariavelmente à medida que a fotografia também envelhece. Jim Reilly é talvez a maior autoridade em conservação de imagem no mundo. Ele lidera o Image Permanence Institute, da Universidade de Rochester. Na porta de seu escritório, ele mantém uma placa onde se lê: Everything Fades (tudo se apaga). Fotografando o instável, estou comentando sobre a própria instabilidade do documento e o conceito da fusão entre o documento e a experiência.

Para você a fotografia sempre foi uma ficção?
A fotografia significa a apoteose da representação no sentido lingüístico. Um simulacro que reflete a realidade no sentido mental e não físico. Por ser estática, ela permite esta organização intelectual, esta taxonomia visual. A fotografia tem muito menos a ver com a realidade de que com os instrumentos e mecanismos utilizados para se conviver com ela.

O sucesso afetou a sua vida?
Não, pois mesmo quando era pobre e vivia nos arrabaldes de São Paulo, era um pobre bem sucedido, um pobre modelo. Quando trabalhava de frentista em um posto de gasolina em New Jersey, eu era o frentista preferido de todos os fregueses. E quando era bartender em Manhattam, o bar vivia cheio. O sucesso tem muito a ver com a satisfação pessoal de se saber importante não importa em que escala. É uma coisa que vem de dentro e não depende do número de puxa-sacos dando tapinhas nas suas costas. Se sentir bem-sucedido não
depende de fama. Conheço pessoas que exalam sucesso em atividades menos reconhecidas e pessoas famosas que parecem sempre tristes e insatisfeitas com o que fazem.
Você disse uma vez que tinha vontade de abrir um bar junto com o seu pai…

Você já conheceu algum homem que não sonhasse em ser dono de bar? Propus esta sociedade para o meu pai uns anos atrás e ele me disse que estava muito velho para esta chateação e preferia uma casa na praia. Tenho pensado em abrir algo em Nova York por alguns anos, mas a quantidade de trabalho com a arte me afasta do projeto do boteco. Uma hora fico velho e troco este projeto por uma casa na praia.

O que você está produzindo agora?
Estou começando uma série de imagens feitas com peças de quebra-cabeças que não se encaixam. Existe um outro projeto muito legal, uma parceria com a documentarista inglesa Lucy Walker, sobre um dos maiores lixões da América Latina, inspirado na obra do fotógrafo brasileiro Marcos Prado e seu envolvimento com os habitantes do Jardim Gramacho.

O que vai ser essa exposição no Brasil?
No Brasil, estou preparando uma exposição muito bonita que se chama The Beautiful Earth, que são várias séries recentes  sobre o tema da terra. No Paço das Artes estarão as obras da série Pictures of Earthworks, que concebi em parceria com a Companhia Vale do Rio Doce, e a Pictures of Junk, que venho produzindo no Brasil há três anos. Na galeria Fortes Vilaça apresento uma nova série de imagens feitas com pigmento solto, com terra, linda terra. Também estou lançando o meu livro Reflex, em português. Ele foi lançado pela Aperture, em Nova York, há dois anos e foi escrito originalmente em inglês. Tive que reescrevê-lo em português porque descobri que é impossível de se aceitar uma tradução na sua própria língua. Mas valeu a pena. Este é um projeto que venho idealizando com o Charles Cosac há quase uma década. A gente está muito feliz com o resultado. A versão americana está na segunda edição e acredito que será um livro muito interessante para o público brasileiro também.

*Publicada na revista TopView entre 2007 e 2009.

O pianista de Bach: entrevista com João Carlos Martins

Ele toca piano desde os oito anos, quando já impressionava seletas platéias pela qualidade técnica precoce e pelo sentimentalismo com as teclas. Aos 63, João Carlos Martins – o primeiro pianista a gravar toda a obra do alemão Johann Sebastian Bach para teclado –, perdeu o movimento das mãos. A vida deste irônico otimista é contada agora em um documentário dirigido por Irene Langemann, que deve estrear no Brasil em março de 2004.

João Carlos Martins começou seus estudos de piano aos oito anos, com o professor russo Josef Cortot. Destacava-se pela agilidade dos dedos e interpretação única, elogiada pelos elementos latinos inseridos na obra do genial compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750). Fez sucesso internacional, principalmente nos Estados Unidos, na década de 60, depois de dois concertos em Washington. Os críticos encantados com a nova descoberta, o tornaram um fenômeno individual da música erudita mundial. Aos 25 anos, Martins sofreu um acidente jogando uma partida de futebol em Nova York. Uma pedra atingiu um nervo da sua mão direita e fez com que ele ficasse afastado da música. Durante este período, entrou no mercado financeiro e chegou a ter uma agência que promovia lutas de boxe. Voltou à música sete anos depois e deu início a gravação da obra completa de Bach. Obra essa que tem caráter transgressor pela ornamentação diferenciada e pelo volume do som, que chega até os últimos lugares da platéia.

Integral de Bach é um trabalho iniciado em 1979 e terminado em 1998. São dezenove cds mais dois discos-bônus com gravações feitas quando Martins tinha entre nove e 21 anos. Mas esse projeto não teve uma trajetória linear. Logo que ele obteve o reconhecimento da crítica internacional e começou a fazer concertos pelo mundo um novo acidente fez com que se afastasse do piano, desta vez por causa de uma lesão por esforços repetitivos. Neste período de ócio obrigatório, ele entrou para o traiçoeiro mundo da política envolvendo-se no escândalo eleitoral-financeiro Paubrasil, empresa acusada de arrecadação irregular para as campanhas de Paulo Maluf. Envolvimento que lhe custou até o questionamento de sua qualidade musical, porque no Brasil não separou o músico de suas convicções políticas. Depois de mais sete anos, Martins voltou à música em 1993 para completar a gravação da Integral de Bach. Recomeça assim a carreira de sucesso nos Estados Unidos. Mas, por um acaso do destino, é assaltado e agredido fisicamente em Sófia, capital da Bulgária, fato que o levou a perder totalmente os movimentos da mão direita. Persistente, ele começa a fazer consertos somente com a mão esquerda. Mas eis que veio o último golpe e um tumor benígno, na mão esquerda, agora o impede totalmente de tocar.

Essa história repleta de momentos intensos poderá ser vista a partir de março de 2004 no documentário sobre a vida de Martins – ainda sem título – dirigido pela alemã Irene Langemann. Trata-se de uma co-produção franco-alemã que, no mínimo, é uma aula sobre persistência. Hoje Martins dirige a Faculdade de Música do Centro Universitário, em São Paulo, onde pretende reintegrar jovens de liberdade assistida da Febem à sociedade, em associação com o Exército da Salvação. Além disso, ele começa sua carreira na regência, depois de ter aula com os maestros Abel Rocha e Júlio Medaglia.

Com uma ironia sofisticada e um senso de humor ímpar, Martins parece grato à sua trajetória de vida. Nesta entrevista cedida exclusivamente à Top Magazine, o pianista conta alguns detalhes do documentário e algumas partes da sua contraditória existência.

Como surgiu a idéia do documentário?

A origem do documentário foi ano passado quando presidi o Concurso Internacional Johann Sebastian Bach, em Leipzig, na Alemanha, que é a terra onde Bach viveu. Naquela época uma revista alemã fez uma matéria grande comentando a minha obra de Bach e aí uma diretora alemã, a Irene Langemann – que já tinha conseguido muito sucesso com os filmes sobre o Ballet Bolshoi e os meninos prodígios do Conservatório de Moscou –, propôs à algumas fundações européias o documentário. Então a Fundação Arte, que é franco-alemã, e mais uma outra fundação alemã resolveram fazer o documentário da minha vida. E durante nove meses toda a equipe ficou acompanhando a minha vida. Eles fizeram entre 30 e 40 horas de filmagem para selecionar uma hora e quarenta.

O documentário é baseado na biografia “Conversa com João Carlos Martins”?

Também pegaram muitas coisas do livro. Cerca de 30, 35 minutos são cenas de arquivo – das televisões européias e da Globo –, e uma hora e cinco minutos é filmagem. Possivelmente estréia nos Estados Unidos em janeiro e em fevereiro no Festival de Berlim. E aqui no Brasil dia 29 de março do ano que vem.

Li que o Bill Clinton participou do documentário fazendo um duo no saxofone com você. É verdade?

Esta história é mais complicada. O Fernando Henrique Cardoso, almoçando com o Bill Clinton, perguntou se ele participaria do meu documentário e o Bill Clinton topou tocar saxofone comigo. Só que a diretora – ela tem uma enorme admiração pelo Bill Clinton, mas não tem admiração pelo Bush –, não queria o Bill Clinton porque ela fez um roteiro onde comecei a minha vida na música, me machuquei na política, voltei para a música e encontrei a minha paz e a minha verdade de novo. Ela falou: “se você fosse amigo do Bill Clinton, eu teria colocado.” Mas foi uma coisa que o Fernando Henrique marcou e, se isso fosse acontecer, a equipe alemã que estava gravando teria que ficar nos Estados Unidos por mais tempo. Então foi abortado o projeto do Bill Clinton. Mas ficamos muito agradecidos ao Fernando Henrique.

O Pelé também participa, né?

O Pelé joga futebol comigo. Eu jogo mal, mas ele me deu uma colher de chá. Foi muito bacana a participação do Pelé.

Você é um personagem que sempre esteve envolvido em polêmica, principalmente pelas suas incursões na política. A sua carreira foi prejudicada por esta ligação?

Lá fora não, nunca. Mas aqui no Brasil é claro que fui prejudicado, paguei um preço alto por isso. Porque durante os sete anos que fiquei fora do piano, participei das campanhas do Paulo Maluf, o que eu nunca mais faria. Não tenho nada contra ele, mas há dez anos que eu não o encontro e cada um tomou o seu caminho. Se eu tivesse talvez participado da campanha de um outro candidato, talvez não teria me afetado. Mas do Maluf foi complicado.

O processo já acabou?

Acabou, ganhamos no Supremo Tribunal por nove a zero. Prejudicou a minha carreira através da mídia, entende? Acho que fiquei durante um tempo meio estigmatizado, mas depois de um período isso foi acabando. Hoje acho que tenho um relacionamento excepcional com as principais jornalistas daqui, pela minha honestidade de ficar com a música.

Você é mais reconhecido fora do Brasil?

Diria que 95% dos meus cds foram vendidos no exterior, então eu diria que sim.

Você disse, em entrevista para a Folha de São Paulo, que o Brasil é um país de fenômenos individuais. Como foi para você, um fenômeno individual, ser reconhecido internacionalmente?

Como interrompi a minha carreira duas vezes por sete anos, o meu reconhecimento fora do Brasil diria que foi pontual. Por exemplo, de 1960 até 1967 foi um reconhecimento muito forte. Depois de 1970 eu desapareci. De 1978 a 1985 voltou a ser um reconhecimento muito forte, principalmente nos Estados Unidos. E de 1993 a 1998 novamente. Como agora perdi a mão direita e acabei perdendo a mão esquerda também, eu entro naquela fase da reta final. Para mim, esse filme foi um resgate de toda a minha vida na música, o que me deu coragem de enfrentar a regência. Vou começar a reger agora.

Você se arrepende de alguma coisa na sua carreira?

Não, porque quando eu estava envolvido, estava envolvido conscientemente. A única coisa que tenho a plena convicção é que tudo o que fiz foi na honestidade, jamais com uma segunda intenção ou qualquer outra coisa. Quando fui para a política foi porque eu tinha abandonado o piano por causa do mal de LER (lesão por esforços repetitivos). Eu achava que nunca mais iria tocar piano. E agora vou até nos últimos dias na música. Acordo todos os dias de manhã, vejo se meu nome não está nos óbitos do jornal, peço o café da manhã e vou estudar música. Estou também fazendo um trabalho maravilhoso na Febem. Estou fazendo a reintegração de jovens com liberdade assistida pela sociedade através da música. E esse projeto é junto com o Exército da Salvação. E está com um sucesso alucinante. Comecei primeiro com um embrião de trinta pessoas, trinta jovens em liberdade assistida. E estou tendo 100% de aproveitamento, o que é raríssimo. E uma vez que esse embrião der certo gente vai partir para projetos municipais, estaduais e federais.

E hoje você ainda toca?

Perdi a esquerda também agora. Tive um tumor, era benígno, mas tinha afetado um nervo já. Então comecei o filme tocando com a mão esquerda e acabei o filme já sem a mão esquerda.

Mas você consegue tocar às vezes?

Não, um menino de cinco anos faz hoje melhor do que eu. O que vou tocar na Sala São Paulo, que é a minha despedida, no dia 17 de novembro, é uma coisa muito simples, mas é uma peça com muito romantismo.

Parece que você encara a vida e seus problemas de uma maneira leve e bem humorada. Você sempre foi um otimista?

Digo sempre que no fundo ninguém sabe qual é a verdade de cada um. É aquela velha história: um cara queria encontrar a verdade e recomendaram um guru para ele. Este guru era a única pessoa que sabia a verdade. Ele foi no guru e o guru disse que como ele era um milionário, primeiro teria que vender tudo o que tinha, rodar o mundo, praticar o bem durante um ano e depois voltar lá sem nenhum bem material. Daí o guru iria falar qual é a verdade. E o cara fez isso: vendeu tudo e rodou o mundo praticando o bem. Finalmente chegou no guru e disse: “então, qual é a verdade?” Ai o guru falou pra ele: “a verdade é amar a natureza, é praticar o bem, é acordar de manhã com otimismo, é simplesmente nunca ver o mal nas outras pessoas”. Ai o guru olha bem pra ele e fala: “ou não?” Ninguém sabe qual é a verdade, então o melhor é você tocar a sua verdade com aquilo que você acredita. E eu acredito, desde criança, numa forma positiva de ver a vida. Essa é a minha verdade. Então sou uma pessoa extremamente bem humorada.

Bach teve uma vida repleta de controvérsias. Pode-se dizer que essa é sua maior semelhança com ele?

Se você falar dos cinco maiores gênios da humanidade em todos os segmentos, eu diria para você que o Bach é um deles. A vida dele foi controversa porque ele era um gênio na música, mas era uma pessoa que não cuidava das coisas materiais. Bach era um paradigma. Ele era um gênio, uma pessoa privilegiada por Deus com a genialidade musical, e por outro lado tinha uma vida desregrada financeiramente. E eu acabei fazendo coisas totalmente diferenciadas da música. Durante as duas interrupções que tive na música, acabei fazendo coisas que nunca se espera de um músico. Diversifiquei demais para o meu gosto.

Um crítico do jornal New York Times disse que você toca Bach para a última cadeira do teatro…

Prefiro convidar Bach para o século 21 do que tentar uma viagem para o século 18. Essa foi realmente a minha tônica na minha interpretação da obra de Bach.

Os problemas físicos começaram cedo com você…

Tive um acidente, uma pedra entrou no meu nervo do braço e me atingiu profundamente. No fundo, eu teria que ter parado de tocar piano aos 25, 26 anos de idade. Se eu consegui a sobrevida que consegui até os dias de hoje, diria que foi quase que um milagre. Foi uma vitória da perseverança e da determinação.

Depois da gravação do documentário você gravaria um disco dedicado à música brasileira, isso vai acontecer?

Era para gravar músicas que vários compositores fizeram para a mão esquerda, mas não vai dar mais. Este projeto foi abortado, mas estou acertando com um jovem pianista para ele fazer essa gravação.

Quem são os compositores brasileiros que você admira?

Tem grande nomes, Almeida Prado… Um dos maiores músicos brasileiros chamava-se Heitor Alimonda. Antes dele falecer, ainda escreveu três peças para a mão esquerda pra mim, que foram as últimas três coisas que ele fez na vida. Era um grande músico. Tem o Mário Ficcareli, que é um ótimo compositor, o Gilberto Mendes… Tem vários compositores de primeira linha.

Mas a música erudita ainda é elitizada…

A música erudita está para os eventos em geral, assim como a torcida da Portuguesa está para o futebol. Mais ou menos isso. Mesmo assim tem muita coisa.

*Publicada na revista Top Magazine em 2003.

Entrevista com Marcelo Tas

Marcelo Tas, 41 anos, dois casamentos, dois filhos. Coleciona óculos de sol, desde os normais até os mais modernos. Ele é mídia, rádio, televisão e internet. Apesar de ser Engenheiro Civil, formado pela Poli, USP, ter cursado jornalismo na mesma universidade e largado o curso “por falta de tempo”, é um repórter de carteirinha. E no programa Vitrine, que vai ao ar todas as quartas-feiras, às 22h30, pela TV Cultura, ao vivo, faz o que quer com os temas tecnologia e comunicação. E faz bem. Apesar de brigar com o horário nobre do futebol brasileiro, o Vitrine tem uma audiência fiel e criteriosa.

Tas começou como ator em 1982, no CTP (Centro de Pesquisas Teatrais), que era dirigido por Antunes Filho. Deixou o tablado quando começou a fazer o programa “Olhar Eletrônico”. Desse programa nasceu seu personagem mais famoso, o Ernesto Varella, um repórter que usa o humor irônico e cínico para fazer suas entrevistas. Da televisão levou o Ernesto para o rádio, quando teve o reconhecimento ampliado, principalmente por estar em uma rádio jovem, a 89 FM de São Paulo. Atualmente o programa não está no ar, mas logo será lançado um multimídia com tudo sobre o Ernesto. Em 2000 Marcelo voltou ao teatro dirigindo e narrando a ópera “Zap, o resumo da ópera”. Funcionou como uma palestra audiovisual que resumia 400 anos de ópera em uma hora e 15 minutos. Um desafio e tanto. Nesta entrevista concedida com exclusividade, nos jardins da TV Cultura em São Paulo, Tas discorre sobre a televisão. Suas idéias são pertinentes, como o programa que apresenta, em meio a uma programação que mais parece ‘a casa da sogra’.

A televisão aberta está se especializando em fazer programas para a classe C partindo do princípio que não é possível fazer popular de qualidade. Você concorda?

Tenho uma tese um pouco diferente dessa. Acho que o povo quer qualidade. Todo mundo quer ser tocado, quer ter uma experiência surpreendente. Tanto eu, quanto você, quanto a nossa faxineira. A gente está nesse mundo pra se divertir, para ser surpreendido, para aprender coisas que a gente ainda não sabe. Mesmo que a gente não saiba disso. Então acho que todo programa de televisão, mesmo os populares, tem uma coisa em comum: tocam o telespectador no coração. Isso vale tanto pro Ratinho, quanto pro Vitrine, quanto pro Jornal Nacional, ou pra uma novela. Entendeu? Por mais que você me diga que o programa do Ratinho – pra pegar o exemplo mais comentado – dá certo porque só tem baixaria, acho que é uma leitura muito rasa. Inclusive do fenômeno Ratinho. Um programa como o dele é um programa que toca as pessoas. Consegue uma conexão, uma comunicação que outros não conseguiram, por isso não foram tão bem sucedidos. E mais, ele tem conteúdo sim. Fala de assuntos que interessam as pessoas, que movem seres humanos. Não é simplesmente uma receita de bolo: junta baixaria com mulher pelada e dá audiência. Se isso fosse verdade, estava cheio de gente rica na televisão, porque tem muita gente tentando fazer isso.

Sérgio Malandro, por exemplo.

Vários. Têm vários exemplos de programas que começaram e acabaram. E a fórmula era essa.

Você fala tocar no coração, mas o que o Ratinho faz é apelar para as deformidades humanas.

Ele já fez mais isso, hoje acho que não faz mais. É até estranho estar aqui sendo um defensor disso. É engraçado, mas acho que isso é uma leitura equivocada que as pessoas estão tendo do Ratinho. Ele começou assim e depois, como é um cara inteligente, viu que a vida dele ia durar muito pouco. Como duraram pouco os programas que fizeram isso. Se você pegar o Aqui e Agora que foi um programa que teve muita audiência, e que eu gostava pela linguagem jornalística, câmera, etc, era interessante. Quando passou a fazer só apelação, só gente se matando, sangue e pessoas atropeladas, acabou. Cadê esse programa? Se essa fórmula desse certo ele deveria estar até hoje dando audiência. Cadê? Acabou. Por que o Povo na TV acabou? É outro programa clássico de apelação dos anos 80. Foi o primeiro talvez dessa série. Por que aquele cara que é o pai do Ratinho, o Alborgueti não virou um fenômeno nacional? Porque ele vai só na apelação. E apelação é um truque muito baixo. As pessoas cansam. Tem vida curta. Só que programas que apostam no conteúdo, numa comunicação mais sofisticada, têm vida longa. É o caso dos programas da Cultura. O Rá-Tim,Bum é um programa que está sendo reprisados há 10 anos com audiência alta. Por que? Porque as pessoas só querem baixaria? Pega um programa da Xuxa, que eu acho que não tem conteúdo, e reprisa pra ver o que vai acontecer. O programa que ela está fazendo em 2001 já está difícil de se segurar, imagina o que ela fez em 90. O público quer qualidade, ser tocado, ser surpreendido. É para isso que a televisão deve ser usada.

Mas talvez nem todas as emissoras entendam assim. Por exemplo, você passou pela Globo e não se estabeleceu. O Casé, que era da MTV, está tendo um espaço pequeno na tv aberta.

Mas então vamos olhar com calma. Todo mundo gosta de pegar a Globo pra Cristo. Tenho uma impressão oposta. Acho que quem está perdido hoje são justamente os outros canais. A Globo é um dos poucos canais que se arrisca, paradoxalmente. E ela não precisava se arriscar porque é a líder. Por que ela iria se arriscar? Mas ela faz uma série chama Os Normais que ninguém nunca tinha feito antes. Com roteiristas que nunca tinham roteirizado série, com diretor que nunca tinha dirigido esse tipo de coisa. E ta lá, dando audiência. Por que ela faz isso? Porque sabe que até comercialmente é o que dá certo. É surpreender o telespectador, oferecer produtos que desafiem a inteligência. Infelizmente as outras emissoras não aprendem uma lição comercial da Globo. O SBT, por exemplo, procura fazer coisas popularescas, na linha das TVs mexicanas. Isso não tem vida longa. Não tem conexão com a cultura brasileira. Então se o Sílvio Santos pegar um resfriado, ou desgraçadamente for seqüestrado, o canal dele vai a falência em um mês. Porque o canal dele depende dele. Só. Ele não tem cultura, não tem roteirista, ator, cenógrafo, figurinista. Não criou um caldo de cultura para fazer a TV dele depois que ele morrer. Enquanto que o doutor Roberto Marinho já está em outra. Passou pros filhos, que já passaram para outros profissionais.

É a teoria que você aplica diretamente no Vitrine.

Acho que a TV Cultura é um exemplo disso. A TV Cultura mais do que tudo é uma emissora pública. Então, além da minha tese – porque essa é a minha tese – a Cultura não tem nenhum compromisso comercial, nem estatal. Ela só tem que pensar no público. Mais do que qualquer outra emissora, tem que fazer programas para o público visando melhorar o discernimento, a cultura e o poder crítico do telespectador. Para quem faz televisão é um privilégio estar na Cultura.

Quem é teu público?

É um público crítico. É um pessoal que assiste televisão com um padrão de exigência muito alto. E que critica o programa cruelmente. Ao vivo. É muito legal fazer o Vitrine, porque a gente é cobrado semanalmente, recebemos sugestões, enfim, todo tipo de manifestação do telespectador. E não é só aquela manifestação: gostei, não gostei, vocês são legais. Não é só uma coisa de fã. São participantes com poder crítico e a gente usa muito o que eles mandam.

O Vitrine revolucionou a tv brasileira por ter sido o primeiro a usar internet ao vivo. Como você faz para conciliar essas linguagens?

É um desafio. O começo foi muito complicado. São muitas tecnologias, é muita gente querendo participar e, se não souber canalizar esses impulsos, o programa fica caótico. Então passei uma boa temporada vendo o programa de fora, vendo que tipo de e-mail chegava, como que era o chat – que é uma coisa que nunca botei fé, sempre achei que era só papo furado – e a minha surpresa foi ver a boa qualidade de diálogo que rolava. Depois gastamos um tempão para ver como usar isso durante o programa. Pelo programa ser ao vivo, a grande virtude é usar o que está chegando. Porque o programa ao vivo é muito cruel. Sempre dá para fazer melhor do que você acabou de fazer.

Vocês chegam a mudar o roteiro do programa por interferência de telespectador?

Sempre. Às vezes muda radicalmente, mas toda vez muda. Lembro na Guerra da Iugoslávia, durante os bombardeios. A gente fez um programa falando desse assunto e sobre como a internet estava sendo usada pelos garotos de Belgrado para mandar notícias. Jornalistas do Ocidente nem tinham acesso às informações que os garotos mandavam pela internet. A gente descobriu esses garotos e convidamos para participarem no chat do programa ao vivo, na quarta-feira à noite. Com uma esperança pequena porque era quinta-feira de madrugada na Iugoslávia. E um garoto entrou e o programa inteiro girou em torno dele. Ele estava em Belgrado, no meio da guerra. Foi uma experiência muito emocionante. Nunca imaginei que a televisão pudesse ser feita assim. O programa inteiro passou a ser os expectadores brasileiros entrevistando um garoto em Belgrado, ao vivo, em meio a um bombardeio.

Essa é uma das melhores maneiras de unir jornalismo e entretenimento.

Acho que é mesmo. Sempre trabalhei unindo essas duas coisas na verdade, apesar de os jornalistas serem muito sérios. Durante muitos anos os jornalistas relutaram em aceitar que o jornalismo também é uma maneira de entretenimento. Talvez agora eles estejam animados demais. O jornalismo com certeza virou o grande show. Acho que tem que dar uma equilibrada.

O que você achou da cobertura televisiva sobre os ataques aos EUA?

Surpreendente. Achei que a televisão, quando acontece esse tipo de evento, é fundamental. Ela mostra a vocação dela. Ao contrário de outros eventos recentes, a televisão foi a fonte de informação, muito mais que a internet. Vou comparar dois fatos. No seqüestro do Sílvio Santos você tinha muito mais informação na internet do que na televisão. Na televisão tinha só a imagem de uma casa; na internet tinha uma riqueza enorme de informação. A identidade do cara, de onde ele veio, todos os dados geográficos do flat onde ele estava, uma reconstituição, enfim, tinha uma fonte. Agora no caso do atentado aos Estados Unidos, a televisão deu um banho em todas as outras mídias. Na verdade o atentado não foi somente um atentado que assassinou tantas pessoas, foi um grande show pirotécnico. Projetou uma imagem na mente de todos nós que a gente nunca mais vai esquecer. Criou uma tela na nossa mente. E a televisão mostrou ao vivo. Acho que é um acontecimento histórico, é uma mudança de atitude para cada ser humano que presenciou. É uma coisa terrível ver milhares de pessoas morrendo ao vivo.

Ao mesmo tempo em que a televisão teve esse papel fundamental na hora que tudo aconteceu, posteriormente o Gugu – SBT – fez um programa totalmente sensacionalista mostrando o que ele chamou de “a realidade dos afegãos”.

Vou te falar uma coisa. Acho que quando o Gugu faz este tipo de programa revela quanto o jornalismo ainda pode melhorar para atingir o grande público. A virtude do Gugu pra mim é de popularizar conteúdos complexos. Você passa qualquer assunto e ele consegue traduzir de uma maneira que a parte mais ampla da população consiga acompanhar. Acho que quando ele faz isso exercita uma virtude que a televisão talvez ainda tenha que aprender: que o jornalismo talvez ainda tenha uma maneira mais clara, mais popular, mais generosa de levar as notícias para o grande público. Isso é que me fez pensar depois desse programa do Gugu. Será que o jornalismo consegue falar o que é o Afeganistão, para a grande camada da população brasileira? Acho que não, porque até agora nem eu entendi direito o que é o Afeganistão.

É mais fácil de entender com as piadas do Casseta e Planeta.

Tá vendo. Acho que isso é interessante de você falar porque os artistas estão conseguindo traduzir melhor a realidade do que os jornalistas. Acho isso um dado extremamente saudável. E aí me encaixo, porque não sou jornalista, nunca tive pretensões de seguir normas dentro do jornalismo, apesar de admirar muito o trabalho dos jornalistas. Mas a realidade hoje em dia é tão complexa, tão multifacetada, tão sutil, tão líquida, que se você tentar agarrar, escorrega nos seus dedos. A pontaria jornalística dos artistas, às vezes, é mais eficiente que a do próprio jornalista. Porque está difícil interpretar a realidade. Acho que a gente está vivendo um momento bastante rico no mundo, caótico, cheio de vários sentidos. Não tem mais a verdade, o bem e o mal, não é mais uma coisa simplista, preto no branco, como era antes.

No Vitrine você é um personagem?

Olha, na televisão ninguém é de verdade. A televisão é artificial pela própria natureza. Se alguém disser ‘sou de verdade na televisão’, está mentindo. Por isso mesmo não sou como sou de verdade. Inclusive as pessoas não me suportariam. A televisão exige um outro diapasão, um outro jeito de falar, o tempo é diferente. Para fazer televisão você tem que inventar uma persona, mesmo que não seja um personagem. Tem que inventar um outro jeito de ser. Isso vale pra todo mundo, inclusive pros jornalistas, apesar de eles não gostarem muito disso. Os melhores jornalistas, os que mais admiro, são figuras que criaram essa persona.

Quem são eles?

Paulo Henrique Amorim, por exemplo. Ele não encontra a mulher dele e fala: “olá, tudo bem?” Não é assim. Ele usa uma verve, desenvolve o comunicador que existe dentro dele. Qualquer pessoa para estar dentro da televisão, antes de tudo tem que ser um comunicador. Para ser um comunicador tem que criar uma conexão com o telespectador. E para criar uma conexão tem que criar um cenário, uma voz, gestos, figurinos, maquiagens, eventualmente uma peruca… Os jornalistas que mais admiro, o Paulo Henrique, o Boris Casoy, Ana Paula Padrão, Lílian Witefibe, são figuras que têm uma persona televisiva.

Você faz rádio, TV e dirigiu teatro há pouco tempo, como você lida com tudo isso?

Infelizmente lido de uma maneira muito natural. Às vezes é enlouquecedor fazer coisas diferentes. Sonho fazer apenas uma coisa só, um dia. Depois que dirigi esta ópera fiquei encantado pelo teatro.

Mas você já não tinha feito teatro?

Tinha feito teatro antes de trabalhar na TV. Mas não considero que foi uma experiência completa. Participei de vários grupos, alguns até muito importantes como o do Antunes Filho, mas nunca tive uma estréia, algo que considere completo. Fiquei o tempo inteiro fazendo televisão e rádio e, no ano passado, tive uma experiência muito rica no teatro que foi dirigir e atuar numa pocket ópera, no Sesc em São Paulo. Chama-se “Zap, o resumo da ópera”. É o resumo de 400 anos, em uma hora e 15. Eles me convidaram para fazer algo provocativo e acabei propondo esse tema, um resumo da história da ópera. E foi fascinante. Primeiro por trabalhar com cantores líricos, que era uma coisa que eu só tinha visto há mais de 50 metros de distância. São seres fascinantes. É como assistir as olimpíadas dentro do estádio olímpico, mas ao lado de um sarrafo de dois metros e meio, que o cara tá pulando. A capacidade física e emocional dessas pessoas é sobre-humana. Era uma montagem que ficou em cartaz pouco tempo, inclusive as óperas são sempre assim, porque são montagens que exigem um esforço físico grande. Acabei fazendo o narrador, então estava no palco com os cantores. E era uma ópera eletrônica também, usava uns softwares de animação, funcionava como uma espécie de quadro negro, aonde a história da ópera ia sendo contada, fascinante. Fomos convidados para montar em outras cidades do Brasil, em 2002.

Em relação ao Ernesto Varella, como é fazer esse personagem?

O Ernesto Varella é um personagem por excelência. Na verdade foi o meu primeiro personagem. Foi o meu começo na televisão, em 83. Me marcou muito e marca até hoje. Por isso adoro fazer este personagem. Mas não estou fazendo ele agora. Estou fazendo um trabalho de recuperação do arquivo do Ernesto Varella e vamos lançar um multimídia dele com tudo que ele já fez.

Há pretensões de voltar?
Quero voltar a fazer ele no rádio. Foi legal porque tem uma geração que conhecia o Varella só da televisão. Topei o convite da rádio porque era para jovens, a 89 FM, e sabia que pouquíssima gente conhecia o Varella. Para minha surpresa deu super certo, a molecada adorou e muita gente achava que eu tinha acabado de inventar.

Quem você gostaria muito de entrevistar, mas que ainda não teve oportunidade?

Gostaria muito de entrevistar astronautas que estão na estação espacial. Esse é meu sonho. Morro de inveja desse milionário que foi para lá agora. Espero um dia ter 20 milhões de dólares para pagar essa passagem. Sou fascinado pelo espaço, gostaria muito de fazer um Vitrine, com uma conexão na estação espacial internacional. Isso era um sonho. Falava isso de brincadeira porque achava que era impossível, mas no ano passado a gente transmitiu o Vitrine ao vivo da Austrália, pela internet. Depois que conseguimos isso, estou achando que tudo começa a ficar possível.

Por que o programa foi transmitido da Austrália?

Porque ganhei um prêmio, chamado IDP, um prêmio do Ministério da Cultura e Tecnologia. Na Austrália a cultura e a tecnologia estão no mesmo ministério. É interessante isso. Não é por acaso que a Austrália é o país com maior número de computadores por habitante do mundo, mais que a Inglaterra ou que os Estados Unidos. Pouca gente sabe disso. E eles conheceram o programa, me sondaram para ver se eu topava entrar nessa história, fizeram uma avaliação e me deram o prêmio. Só que eu tinha que receber o prêmio na Austrália. O problema era que o programa é ao vivo e para ir para a Austrália você gasta dois dias só para ir. No fim, o Ministério da Tecnologia me botou em contato com uma universidade de lá, que é University of Tecnology, e os caras assistiram pela internet – porque o Vitrine vai para a internet também – e falaram ‘vamos transmitir o programa ao vivo aqui da Universidade, pela internet’. Fizemos uma parceria com o UOL, aqui no Brasil, e transmitimos.

Você acha que tem o reconhecimento que merece com o programa?

Não. Esperava ser reconhecido como o Rodrigo Santoro (risadas). Acho que tenho mais qualidades que as pessoas ainda não descobriram. Mas enfim, fico super feliz com o reconhecimento que o Vitrine está tendo. A gente esteve na Alemanha, ano passado, durante um festival que fui convidado justamente para mostrar o programa. E eles ficaram muito surpresos. Em Berlim não tem esse tipo de programa. Acho que tudo isso vem de um privilégio que tenho de fazer um programa sobre tecnologia e comunicação, dentro de uma emissora pública. Tenho a liberdade para falar com todos os veículos de comunicação, não tenho nenhum impedimento de falar com A, B ou C porque é da empresa X ou Y. A gente não tem amarras comercias. Posso falar livremente de qualquer empresa de uma maneira crítica, elogiar ou criticar produtos que estejam chegando ao mercado. Coisa que não dá para fazer em emissora aberta. Você estar numa emissora que tem comprometimentos com a Microsoft, ou com a Nokia… Na Cultura a gente tem esse privilégio e exercitamos isso semanalmente. A gente fala de uma maneira aberta e as pessoas reconhecem isso. A credibilidade do Vitrine vem daí.

Você é um otimista em relação ao Brasil?

As pessoas acham que sou um otimista exagerado. Não me acho otimista. Acho que o Brasil é um país fascinante mesmo, os habitantes são muito criativos e críticos. Assistem televisão de uma maneira crítica, ao contrário do europeu que é muito passivo, finge que não dá importância, mas acaba assistindo um monte de bobagem. Os franceses se dizem super críticos, esnobes, falam que não gostam de televisão, mas ficam vendo um monte de porcaria. É lógico que tem bons programas também na Europa, mas aqui no Brasil acho que as pessoas são críticas, os jornais são atuantes, o público pressiona. Sou otimista nesse sentido. Agora acho lamentável a desigualdade social criminosa que a gente vê no Brasil. Isso é uma coisa que me deixa bastante inquieto. Acho intolerável, a gente não pode dormir tranqüilo enquanto isso permanecer. Porque os grandes larápios estão roubando os impostos que a gente paga, e esses larápios não são só os famosos, do quilate de Jader Barbalho e Paulo Maluf, eles estão nas câmaras de vereadores, em todos os lugares, atrás de balcão do INSS. Tem em todos os escalões. Tem gente que gosta de falar que os larápios só são os ricos no Brasil, e é mentira. Isso que a gente não pode aceitar porque o Brasil é um país riquíssimo de recursos humanos e físicos.

Mas você acha que um dia o brasileiro não vai mais aceitar isso?

Acho que já mudou muito. Radicalmente. Quem não enxerga isso contribui para que as coisas continuem assim. Hoje vivemos um momento de democracia como a gente nunca viu. Não é que eu acho, isso é um fato. A gente hoje tem capacidade de denunciar e eliminar figuras nacionais como nunca aconteceu, em nenhum país. Se você pegar os últimos doze anos, tiramos um presidente, dezenas de deputados, presidentes do senado foram dois nesse último ano. Se você não acreditar no poder de mudança, você vai acreditar em que? É um poder muito forte o que existe no Brasil, um poder de pressão popular. Com certeza levo isso pro meu programa. Aliás, no Vitrine, esse ano, fizemos uma coisa que achei maravilhosa. A gente serviu de porta-voz de um internauta que denunciou o plágio do discurso do ACM, o discurso de renúncia do Antônio Carlos Magalhães foi um plágio. Isso passou batido em toda a imprensa nacional e um internauta denunciou em um site. O discurso era do Afonso Arinos, literalmente. Aquele discurso emocionado, chorão, etc e tal. O que a gente fez: conseguimos pegar o discurso do Afonso Arinos, colocamos um do lado do outro. O Afonso Arinos falava, o ACM falava. Foi uma bomba. No dia seguinte estava em todas as páginas dos jornais. Isso aconteceu por que? Por causa da internet. Por conta da liberdade que existe, por causa de um internauta que se chama Sérgio Faria que descobriu isso e colocou num diário on-line dele, esbarrei nessa informação, coloquei no programa. Isso foi crescendo e em 24 horas estava em todas as mídias.

Fora do programa você usa bastante a internet também?

Uso bastante. Eu hoje em dia uso bastante, mas com menos ansiedade. Já fiquei muito tempo navegando a deriva. Pulando de um galho no outro. Hoje acho que estou administrando melhor esse tempo. E é legal, porque você começa a afinar sua pontaria a encontrar melhor os seus parceiros, as pessoas que pensam parecido, ou até mesmo as que pensam diferente. Costumo dizer que a minha geração é uma geração que ainda conversa sobre internet e sobre computador. A geração da minha filha de 12 anos, conversa sobre os assuntos que têm na internet. Não falam mais sobre a ferramenta. Mas a minha geração, principalmente, ficou muito impactada pela ferramenta. Então é parecido com um motoqueiro que anda numa Harley Davidson pela primeira vez. Ao invés de ficar falando da viagem, fica falando do guidão, do retrovisor, do pneu.

*Publicada na revista TopMagazine em 2001.

Entrevista com Laerte

Laerte em crise?

O quadrinista Laerte Coutinho está em crise. Mas isso não é algo negativo, é simplesmente uma maneira de enxergar os acontecimentos da vida de forma realista. Considerado um dos maiores cronistas gráficos do Brasil, ele está lançando dois livros, Laertevisão e Piratas do Tietê – A Saga Completa, entre outras coisas.

Ele lançou o livro Laertevisão, pela Conrad Editora, que traz as suas memórias da infância de maneira lúdica, conduzidas através da presença da televisão. Também publicou recentemente o primeiro dos três volumes da série Piratas do Tietê – A Saga Completa, pela editora Devir, com os personagens que o colocam no hall dos maiores criadores brasileiros. Também está envolvido em dois longas-metragens – uma animação dos Piratas e uma adaptação do personagem Suriá para o cinema –, um desenho dos Três Amigos para a televisão e a produção de um livro inédito. Laerte Coutinho diz que isso tudo parece muito assustador quando enumerado, mas que sua vida é mais tranqüila do que pode parecer, apesar de acreditar que atravessa um momento de crise.

Nascido em São Paulo, em 1951, Laerte cursou jornalismo e música, mas não se formou em nenhum dos dois. Desenhava em um jornal do Centro Acadêmico e fundou a revista Balão, ao lado de Luiz Gê, ilustrador que também é considerado um dos grandes nomes brasileiros dos quadrinhos. Um belo dia resolveu se profissionalizar em desenho. Depois de uma participação política com a produção de materiais de campanha para o MDB (oposição da ditadura militar), começou a trabalhar para sindicatos e fundou a Oboré, agência de comunicação visual sindical. Nos anos 80 passou a publicar nas revistas da editora Circo, como a Chiclete com Banana. Temas urbanos faziam parte das tiras de O Condomínio e Piratas do Tietê. Foi roteirista da Rede Globo em programas como TV Pirata e Sai de Baixo e publica tiras na Folha de São Paulo desde 1991. Hoje, aos 56 anos, Laerte é considerado um dos maiores cronistas gráficos do país. Nessa entrevista cedida por telefone, o autor falou sobre seu trabalho atual, que não está mais preso aos personagens, sobre a crise que está passando e também fala de não fazer, necessariamente, tiras para provocar o riso.

O livro Laertevisão é uma autobiografia, pelo menos um trecho dela?

Não, não é no sentido que uma autobiografia é uma narrativa organizada da vida de uma pessoa e essa não é exatamente uma narrativa organizada. É fragmentada e caótica, não tem uma linha condutora. Na verdade a única orientação que procurei manter era a ligação com a televisão. Mas mesmo essa muitas vezes é deixada de lado, algumas viagens ali são apenas dos lances de memórias da infância. Para a edição do livro até que foi pensada alguma ordem cronológica, mas não é rigorosa não.

Por que foi seu filho (Rafael Coutinho) que organizou e não você?

Porque ele edita melhor, é um artista gráfico melhor do que eu. Além disso, ele tem um grupo de artes plásticas e gráficas, o Base V, e tem uma experiência boa tanto em programação visual de eventos como em publicações, bem maior que a minha. Para falar a verdade sou bastante tosco nessa coisa de organizar visualmente o meu trabalho, de fazer a edição.

Com esse livro você está revisitando a sua obra?

Revisitando? Não tenho muita certeza. O que é revisitar?

Rever.

Isso faço sempre, todos os dias. Acho que na medida em que a gente vai ficando meio velho vai tendo mais passado, então é natural que tenha mais essa coisa de ficar fazendo balanços e lembrando de coisas. O memorialista, que não é exatamente o que eu sou, às vezes tem como matéria-prima do trabalho o próprio passado, mas não quer dizer que ele esteja fazendo um balanço de vida. Na verdade ele pode estar produzindo uma obra original e perfeitamente futurista, vamos dizer assim. Está usando do próprio passado como material de trabalho, mas nem sempre está fazendo um registro formal ou uma crônica precisa dos acontecimentos. O personagem que representa o meu passado nesse livro, por exemplo, não é exatamente eu, entende? Pode ser um alter-ego.

E quem é o Laerte hoje?

Não sei dizer, é muita esotérica essa pergunta.

Você sempre diz que não consegue definir o sentido das coisas…

É, não consigo definir um sentido para as coisas. Mas isso não me define, define?

Não sei.

Quem é o Laerte? É alguém que não consegue definir as coisas? Não, não é, isso é só um pedaço.

Sobre o lançamento dos dois livros, os dois longas-metragens, o desenho dos Três Amigos para a TV e o livro inédito. Como está sendo tudo isso?

Olha, é muito menos enlouquecedor do que parece contado assim. Dessa maneira parece que o meu dia-a-dia é uma loucura, mas não é, é tudo muito tranqüilo. Essa coletânea dos Piratas, por exemplo, foi só o trabalho de coletar e organizar e isso foi feito pelo Toninho Mendes e pela editora Devir. A outra coletânea também foi feita pelo meu filho e pela Conrad. Dou os meus pitacos, mas não muito mais do que isso. Os longas-metragens, na verdade, só um deles está realmente em fase de roteiro, que é o dos Piratas, e isso é uma coisa muito lenta. O filme da Suriá está ainda numa fase anterior, estou fazendo com o Rogério Moura, que é um cineasta amigo meu, estamos trabalhando a idéia, o argumento. O desenho dos Três Amigos para a TV estou fazendo com os meninos e esse já envolve um pouco mais. Mas também não está alucinante. Estou fazendo os roteiros e quem vai fazer o trabalho de animação é o Daniel Messias, então tudo isso é bastante compartilhado, não é sozinho.

E o livro inédito?

Esse é um problema. Porque já fiz um roteiro que não me satisfez, então voltei à estaca zero e comecei de novo. Mas sobre esse projeto não quero falar para não azedar.

Li algumas críticas que falam que o seu traço ganhou contornos existencialistas. O que é essa mudança?

Acho que o contorno existencialista não fui eu que falei, foi algum redator. Não que eu renegue, mas não tenho muita certeza do que seja existencialismo, a não ser no contexto do Sartre. Sim, adotei um modo de produzir histórias que remete, de certa forma, ao modo que usava quando era adolescente, antes de me tornar profissional, que tem ainda uma dose muito grande de liberdade, de porra louquice, e que está me interessando agora. Não estou tentando virar jovem de novo, mas estou tentando retomar algumas linhas de trabalho que deixei pra trás quando me profissionalizei. Porque a profissionalização envolve necessariamente um traço meio viciado, mais marcado, repetido. O autor, para ser reconhecido pelo seu público, imita muitas vezes determinadas fórmulas, para que a pessoa olhe e já saiba que é seu. Estava sentindo que tava ficando muito de um jeito só e aí resolvi dar essa guinada em coisas que deixei lá para trás.

Era uma visão mais ingênua?

Não sei se era mais ingênua porque continuo o mesmo idiota que sempre fui em matéria de percepção de mundo, vamos dizer assim, só que estou mais velho e conheço mais gente do que naquela época. Mas é muito mais do que isso, sabe, do que ingenuidade.

Essas mudanças estão associadas a uma crise de artista?

Não sou exatamente um artista, sou criador de um gênero que é considerado entretenimento mais que arte. E dessa forma existe alguma linha em comum com a literatura ou com artes plásticas ou com grafismo, mas dentro da vida comercial muitos autores permanecem justamente nas formas, o que não é exatamente uma coisa condenável, muitas vezes essa persistência existe, mas não era uma linha que tava me agradando.

Mas é uma crise?

É uma crise. É, abala as certezas que eu tinha. Produzir tira, para mim, é um esforço extra, de concentração, um trabalho extra de busca, não é uma coisa…

Mecânica?

É, não tem a parte mecânica que tinha. Por exemplo, quando trabalhava com o universo de personagens era: ah, hoje vou trabalhar com fulano, quais são as características dele, em que situação posso colocá-lo. Eram os pontos de partida. Isso não é um hábito condenável de jeito nenhum, quero deixar isso claro, mas é que no meu caso estava insatisfatório.

Você sempre foi crítico em relação a sua obra?

Sim, mais insatisfeito do que crítico. Acho que é uma insegurança básica, sempre acontece de eu olhar o meu trabalho e achar que podia ser feito diferente, que deixa a desejar.

Você compara muito?

É, comparo, preciso parar com esse vício.

O que te faz decretar que uma tira vai ser publicada?

Bom, tem também o limite das coisas e o bom senso. Se eu fosse um insatisfeito radical não chegaria a publicar nada nunca. Algum nível de satisfação eu tenho, claro, já fiz piadas que rio sozinho, algumas das minhas histórias me agradam muito, mas sempre tem alguma coisa que mudaria, na forma ou no desenho, dá vontade de desenhar de novo, mas daí não sou esse autor que fica refazendo a própria obra.

E como é fazer humor quando você está de mau humor?

Esse problema não existe para mim porque humor não é uma coisa que se divida em mau humor ou bom humor. Humor é um gênero de trabalho que não tem a ver com alegria ou tristeza. O humor é um modo de se colocar em relação à criação, é um modo de ver as coisas, de ver a realidade. Se estou de mau humor não produzo nada, quer dizer, estar de mau humor é uma coisa que emocionalmente me impede de trabalhar. Assim como estar de bom humor também me impede. O humor é exatamente a ausência da emoção. Quando a gente fala que uma pessoa está de bom humor, na verdade queremos dizer que ela está alegre, emocionalmente bem disposta. E, para mim, isso é um atrapalhante. Quando estou nesse estado não quero trabalhar, quero sair, comemorar, cheirar flores e perseguir as borboletas pelos campos. Quando estou de mau humor, é uma forma de dizer que estou triste, enraivecido, com ódio, cheio de ressentimento e coisas desse tipo, e também é um momento mau de trabalhar, bloqueia, impede de ver as coisas com humor. Humor para mim é a ausência desse tipo de emoção.

A neutralidade é o caminho?

Não, também não é a neutralidade, mas sim o modo intelectual de ver, o que não quer dizer neutro. A maior parte das piadas envolve o sofrimento de alguém, envolve uma situação na qual alguém sofre. Se você entender esse sofrimento como uma coisa real e passar a se emocionar com isso, você destruiu a piada e você não vai rir. Não só não vai rir, mas vai destruir a leveza e o modo intelectual de lidar com a coisa, porque vai trabalhar com emoções, com choro, com alegria ou com exultação, vai trabalhar em outro mundo. O modo frio de ver pode levar ao humor ou ao terror. Mas daí é outro aspecto.

A sua preocupação é fazer as pessoas rirem?

Não, quero criar uma história que seja interessante, levante risos ou não. Para as pessoas ficarem pensando ou ficarem atônitas, às vezes é o que as pessoas precisam ficar: atônitas. Nem tudo tem resposta, sabe? Isso ou aquilo, as coisas não são assim. Às vezes o caso é só ficar chapado, olhar e falar: nossa!

Você está em uma fase pessimista em relação à vida?

Não sei exatamente, mas estou em uma disposição X. Em relação a algumas coisas é positiva em relação a outras não. A minha disposição agora é o meu modo de ver as coisas. Há quem ache isso pessimista e há quem não ache isso não é pessimismo, que é realismo ou até otimismo. Em relação a algumas coisas estou menos encantado, menos esperançoso, já em relação a outras não, acho que existe melhora e expectativa.

E como você lida com a exposição da sua vida através das tiras?

Bom, estou protegido pela ficção (risadas). Aquele lá não sou eu, realmente não sou. É uma interpretação a partir de elementos da minha vida mesmo, da minha vida pessoal. Numa certa medida sempre fiz isso, qualquer personagem meu é, de alguma forma, uma extensão.

Quem é o teu público hoje?

Não sei, os cinquentões, os quarentões, os trintões e os vintões. Tem uma coisa legal de fazer coletânea que é reapresentar o seu material para pessoas que não viram aquilo. Por incrível que pareça nasceram mais pessoas depois que aquilo foi feito, muitas mais, tem gente que nasceu na época que eu tava fazendo e que hoje já tem condições de ler! E isso tudo é vantagem, muitas vezes o material não sobrevive ao tempo, mas boa parte sobreviveu.

*Publicada na revista TopView entre 2007 e 2009.

Sab(ilda) – entrevista com a escritora Hilda Hilst

‘Ninguém ficará ileso’, disse Caio Fernando Abreu sobre a prosa de Hilda Hilst descrita em A Obscena Senhora D, lá pela década de 80, quando os reflexos da juventude e da atitude transgressora de anos antes da escritora ainda faziam com que a pessoa fosse muito mais interessante que a obra. Só que hoje, aos 72 anos, o que era belo não é mais tão sensual e o que era transgressor talvez esteja ultrapassado. Eis que o que vale é o lirismo hilstiano e disso provavelmente quem ler, não sairá ileso.

Hilda Hilst é dona de frases de efeito, opiniões certeiras e sarcásticas, por vezes meiga e outras tantas erótica. Tudo ao mesmo tempo. A escritora tem agora toda sua obra reeditada pela Editora Globo, o que para ela representa um atraso de reconhecimento. Hilda Hilst é a mulher para quem Carlos Drummond de Andrade disse: “Então Hilda, que é sab(ilda)/ Manda sua arma secreta:/ Um beijo em morse ao poeta/.

Certa vez ela mencionou que estava sob a ‘maldição de Potlatch’, justificando o por que de não ser lida. Potlatch é um ritual, identificado pela primeira vez entre os índios da costa noroeste americana, no qual a parte mais importante da riqueza de uma determinada tribo é destruída para que se alcance a glória. Será este o caso também de Hilda Hilst? Essa certeza só o tempo dirá, tempo que para ela se traduz na ‘volúpia da permanência e no desejo da imortalidade’. O fato é que Hilda Hilst se sente livre para fracassar. Ela abandonou a boemia, em meados dos anos 60, para se isolar na Casa do Sol, uma fazenda próxima a Campinas, São Paulo, onde vive até hoje com mais de 60 cachorros. Diz que a vida em São Paulo a distraía demais, ‘apesar de ter amigos deliciosos’. Isolou-se e hoje é considerada uma das mais importantes escritoras da língua portuguesa.

Hilda Hilst já não escreve mais, cansou, e agora lê e relê os clássicos da literatura. Mas Mora Fuentes, escritor que vive também na Casa do Sol, disse, em uma entrevista, que ela estava escrevendo um conto que seria chamado de O Koisa, no qual se coloca no lugar de uma azeitona dentro de uma empada. E filosofa.

Nascida em Jaú, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930, é filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso. O pai sofria de esquizofrenia e Hilda não teve um contato normal, digamos, com ele. O que provavelmente a justifica quando ela diz que é totalmente Electra: ‘procurei meu pai em todos os homens que amei na vida. Com raríssimas exceções’. Relação conturbada que fica evidente nas características incestuosas dos livros Cartas de um Sedutor e Caderno Rosa de Lori Lamby. O Caderno Rosa, por sinal, representa o fim de sua literatura séria, porque talvez obras eróticas ou pornográficas sejam apenas rotuladas de bandalheiras.

Hilda Hilst sempre gerou polêmica e seus deboches não são simples deboches, são deboches de Hilda Hilst. Como os que ela destilou nesta entrevista cedida por e-mail, e, se você conhece um pouco dela, vai considerar estes extremamente amenos.

Hoje, depois de mais de cinqüenta anos escrevendo, você se considera livre para fracassar, como diz o seu poema? O que seria fracasso para você?

Eu me considero sim, sou corajosa o suficiente. Fracasso quer dizer o que está nos dicionários. Mas quando alguém tem coragem suficiente até para fracassar é porque  conseguiu uma liberdade onde não existe o medo. Eu disse isso na contracapa da edição original do Amavisse:

 O escritor e seus múltiplos vêm vos dizer adeus.

Tentou na palavra o extremo-tudo

E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância

Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura.

A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito

Tempo-Nada na página.

Depois, transgressor metalescente de percursos

Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.

Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.

A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.

O Caderno Rosa é apenas resíduo de um “Potlatch”.

E hoje, repetindo Bataille:

“Sinto-me livre para fracassar”.

Potlatch refere-se ao “Poder do Perder”. É um ritual incompreensível para a nossa sociedade, identificado pela primeira vez entre os índios da costa noro­este americana. Eles realizavam cerimoniais nos limites do seu território, onde destruíam seus objetos mais preciosos, demonstrando dessa forma a seus inimigos que, se não tinham medo de destruir suas maiores riquezas, não teriam medo de nada ou ninguém. O primeiro cientista a estudar o Potlatch foi o antropólogo Marcel Mauss. Depois dele, encontrei referências desse costume no livro A parte Maldita, do filósofo Georges Bataille, que eu admiro muito.

Fiz meu trabalho do melhor jeito que pude, não fiz concessões. Escrever foi uma experiência muito bem sucedida na minha vida e se demorei a ser lida e distribuída isso é outra coisa. Na hora de escrever não pensava nisso. Quando escrevi o Caderno Rosa sabia dos riscos a que me expunha. Mas não tive medo de fracassar.

Na minha pesquisa sobre você, sempre mencionam o fato de você ter tido uma vida boêmia na juventude e ter sido uma das mulheres mais transgressoras para o seu tempo. Você concorda com isso?

Claro. Sou transgressora até hoje. É meu jeito natural de ser (risos).

O que te levou a abandonar a boemia e, em 1963, ir para a Casa do Sol?

Eu queria fazer meu trabalho, que era escrever, e minha vida em São Paulo era adorável, com amigos deliciosos, mas me distraía muito. Foi por isso que vim. Para poder trabalhar.

Como você vê a disparidade entre o que era considerado transgressor nos anos 50, para uma mulher, e a liberdade que se tem hoje? Você ri muito disso tudo?

É, era um absurdo na década de cinqüenta uma mulher ser considerada prostituta porque ia num cinema à tarde. Mas eu nunca me preocupei com isso. Fiz o que quis fazer porque sempre soube que eu era livre, como todo mundo é. Vejo a mudança como um avanço. Mesmo assim, relativo. Qualquer comportamento que demonstre liberdade de atuação ainda perturba muito as pessoas.

Entendo quando você diz que é necessário se isolar do mundo para escrever sobre o ser humano. Posso concluir, então, que até os 33 anos você viu tudo que teoricamente poderia ver em relação a diversidade humana para poder se isolar com sua literatura?

Claro que não. O que eu entendi nessa idade é que se eu não tomasse uma atitude radical, o tempo ia passar e eu não ia fazer meu trabalho. Foi realmente uma opção para poder escrever. Mas aqui continuei viva, apreendendo e participando do mundo. Convivi com amigos que eram escritores, artistas de várias áreas, gente de teatro. Isso me mantinha atualizada, porém com mais tempo para ler e trabalhar e era menos interrompida. Lia 10 horas por dia, praticamente. Pude continuar estudando e pensando no meu trabalho com mais tempo.

Em vários materiais que li, existia a reclamação constante de que você não foi reconhecida nem lida como deveria. Mas eu tenho 23 anos e a sua obra desperta vários interesses em mim. Por exemplo, vi a peça O Caderno Rosa de Lori Lamby e fui procurar o texto depois porque achei maravilhoso. Tudo bem que sou apenas uma pessoa, mas imagino que como eu, várias outras ficaram tocadas. Isso não é suficiente para você?

Quando você nasceu, eu já escrevia há 27 anos, que são quatro anos mais do que você viveu até agora. Meus livros só há dois anos despertaram o interesse de uma boa editora e estão sendo distribuídos. Pouco antes disso, quando eu entrava numa livraria para comprar meu livro escutava: “Hilst, é? Conheço sim, é uma escritora estrangeira. Mas não temos o livro não.”. O escritor não fica escrevendo anos e anos sem parar apenas para criar uma corcova no alto da coluna (risos) ou porque não tem o que fazer. Pelo contrário. Ele sabe que tem uma coisa importante a dizer e “essa coisa” precisa ser comunicada aos outros. Você, por exemplo, é jornalista. Não sei se você é jornalista apenas pela sobrevivência diária ou se essa opção é parte do teu projeto de realização, teu desejo mais importante. Se for esta segunda hipótese, você vai ficar triste se apenas uma ou duas pessoas lerem tuas matérias, mesmo que sejam leitores excepcionais. Você ia ser despedida do jornal e nunca mais ninguém ia saber das tuas matérias, nem esses 2 leitores. Chato, não é?

Com o mesmo Caderno Rosa de Lori Lamby você anunciou o fim de sua literatura séria. Isso foi apenas uma estratégia de marketing, já que O Caderno é uma literatura séria?

Marketing, no meu caso, é uma palavra que não se encaixa muito bem. Um dia ainda vão dizer que minha juventude foi só estratégia de marketing (risos). Eu quis fazer uma brincadeira, mostrar que se escrevesse bandalheiras eu venderia como todo o mundo porque o mundo prefere mesmo as bandalheiras. Eu ria muito enquanto escrevia a Lori. Parou de ser brincadeira quando percebi que tinha conseguido uma linguagem mais ampla, mais livre. A boa Literatura pode existir em todas as formas, ser bem humorada, picante, profunda, obscena, caricaturizar os costumes e a moral. Alguns amigos, críticos e jornalistas ficaram chocados com a Lori, diziam que eu tinha enlouquecido, que não era mais uma escritora séria, que tinha me transformado numa louca pornográfica.

O que seria ser plenamente reconhecida para você?

Ganhar o Prêmio Nobel, sem dúvida (risos).

Como você lida com as críticas?

Leio as críticas. Só isso.

Gostaria de plagiar um pedaço de um texto sobre o seu pai para fazer uma pergunta: Os seus versos têm eternidade no espaço; como tê-la no tempo?

Todo o artista tem a volúpia da permanência, o desejo de imortalidade. É preciso ter um bom trabalho para permanecer no tempo.

O que é o belo para você?

Tudo aquilo que tem Beleza. É impossível não sentir sedução pela Beleza. Deve ter a ver com a nostalgia do Paraíso.

De onde vem a sua inspiração?

Não sei, é mesmo um mistério. Eu chegava a ter febre quando estava trabalhando. Mas vinha de um jeito que eu não sei qual é. Não adianta imaginar que existe um botão que podemos apertar para ter inspiração. Ela vem ou não. Para a poesia, considero imprescindível.

Qual o papel do tempo no resultado da criação?

É preciso tempo para poder escrever.

Gostaria de tocar em um assunto que é extremamente pessoal, mas que acho relevante para o entendimento da pessoa e da obra. Seu pai, Apolônio Hilst, era esquizofrênico. Acredito que em algum momento isso tenha te perturbado significativamente. Até onde existe esse reflexo em sua obra?

Claro que me perturbou, ninguém tem um pai esquizofrênico e passa impune por isso. Mas meu pai foi um poeta, um homem belíssimo e muito inteligente. Apesar de morar em Jaú, no interior de São Paulo, e na época uma cidade pequena, ele se correspondia com o pessoal da Semana de 22. Foi um homem muito singular e adiante do seu tempo, talvez por isso tenha enlouquecido. Como praticamente não o conheci e nem convivi com ele, pude criar uma imagem extremamente cativante. Ele e minha mãe viveram uma paixão muito importante. Sou totalmente Electra, a vida inteira procurei meu pai nos homens que amei, com raríssimas exceções.

Você tem a intenção de transformar a sua chácara num centro de estudos psíquicos, filosóficos e científicos? Como seria isso?

Eu queria fazer uma fundação mas é muito difícil e já desisti disso.

O que é a imortalidade da alma?

É exatamente isso. Acredito que a alma é imortal, não deixa de existir depois da morte.

Você estuda ufologia também?

Li muito sobre Ufologia, acredito em discos voadores. Eu acredito e me interesso por todos os assuntos ditos paranormais. Sabemos quase nada de tudo. E se existe o elétron, ou o neutrino, por que não a alma, os universos paralelos?

Baseando-se nos experimentos de Friedrich Juergenson, você se dedicou a gravação através de ondas radiofônicas de vozes que assegurava ser de pessoas mortas. Você continua com essas experimentações?

Não, mas pretendo recomeça-las.  Só que agora utilizando o computador.

Qual a tua relação com o espiritismo?

Respeito, li muitos livros a respeito, de excelentes autores. Mas não sou espírita.

Marcelo Pen, que escreve para a Folha de São Paulo, disse o seguinte de você: “É raro encontrarmos um escritor vivo de quem possamos falar, com acentuado grau de certeza: este vai ficar”. A hipótese de o reconhecimento pleno chegar a você somente quando não estiver mais entre os mortais, incomoda?

Acho uma chatice e espero ser reconhecida em vida, o mundo vai ter que se apressar (risos). Todo artista tem esse desejo.

Quais são as suas referências em relação à literatura contemporânea? E quais são as suas críticas a ela?

Drummond, Guimarães, Becket, Bataille, Camus, Kafka, Joyce, Simone e Sartre, Ernest Becker e tantos outros que devo ter esquecido muitos. Não tenho críticas à Literatura Contemporânea, acho que ela tem tentado todo o possível. Não diria o mesmo da crítica (risos). Atualmente leio muitas biografias, filosofia e um pouco de física. Faço principalmente releituras.

Você afirmou uma vez que a sua literatura só fala da vida, com todas as suas belezas e mazelas. Vejo nisso uma semelhança com o dramaturgo Nelson Rodrigues. Para você, existe essa semelhança?

Toda Literatura fala da vida e tenta descrever o homem, seu universo, “mazelas”, limites e finitudes. Isso é comum entre os autores. Com Nelson Rodrigues, além desse fator comum, não vejo semelhança alguma.

Hoje te pedem muitas entrevistas, mas você diz não tem mais nada a dizer. Você acha isso mesmo?

Acho, por isso eu digo.

Quem lê Hilda Hilst?

Todo o tipo de pessoas. Sei disso pelos e-mails que recebo. Principalmente quem se pergunta em profundidade.

Quem você gostaria que lesse Hilda Hilst?

Gostaria que todos me lessem.

Qual a tua relação com os animais, principalmente os cachorros?

Tenho muita pena de tudo que está vivo porque um dia vai morrer. Mesmo existindo a imortalidade, cada experiência é única. O mundo é comovente. A humanidade também. Tenho um profundo amor pelos animais. Me identifico com eles, principalmente com os cachorros. Bem mais que com a espécie humana.

Você passou por uma cirurgia recentemente e a única recomendação específica é que abandone o cigarro. Você está conseguindo se livrar deste vício?

Não foi a única recomendação não. Eu teria que andar muito todos os dias, dar caminhadas intermináveis. Mas adoro fumar e sempre fui sedentária.

Você se sente mais feliz pelo fato de a Editora Globo reeditar toda a sua obra?

É claro.

Tem uma pergunta que sempre faço para escritores quando os entrevisto e gostaria de repetir para você: por que você escreve?

Eu escrevia porque era uma compulsão. Não tive outra alternativa.

*Publicada na revista TopMagazine entre 2001 e 2004.

Entrevista com Ernani Buchmann

 Humor tipicamente curitibano

Curitiba tem um humor peculiar e isso é uma obviedade para quem é daqui ou já morou na cidade. Na certa você já deve ter ouvido expressões como: o curitibano tem cara amarrada; não cumprimenta o vizinho mesmo que more no mesmo lugar há anos; acelera o carro quando alguém dá sinal avisando que vai mudar de pista; se orgulha de dizer que mora na cidade mais ecológica do Brasil; acha lindo olhar para cima e apreciar o céu cinza; adora dizer que todo curitibano é muito fechado; entre outras. São apenas algumas considerações sobre manias de um povo, preconceituosas ou verídicas.

 Essas características se construíram basicamente por duas razões: os maneirismos dos povos colonizadores e as condições climáticas. Lógico que devem existir outros motivos para sermos como somos, mas essas duas são essenciais para entender o comportamento e o humor da cidade. Nada melhor que um cronista observador dos costumes para dar alguns pitacos sobre o humor de Curitiba. O escolhido é natural de Joinville, Santa Catarina, mas veio para cá ainda criança e possui um senso de humor irônico, além de ser apaixonado pela análise das pessoas do país. Ernani Buchmann, jornalista, publicitário e escritor, há trinta anos escreve sobre as belezas e mazelas da Cidade Sorriso e até hoje não conseguiu descobrir o porquê desse apelido. Autor de livros sobre os trejeitos de quem anda na Rua XV e fica de bate papo na Boca Maldita – como Onde me Doem os Ossos e Quando o Futebol Andava de Trem – ele aguarda o lançamento do inédito Bogart Curitibano, previsto para 2008. Buchmann conversou com a TopView para contar como entende o humor da capital paranaense, com direito a casos, causos e piadas intercalados durante a hora de conversa, e se disse fascinado pelo jeito da cidade. Um olhar com amor e veneno, naturalmente.

Como é o humor do curitibano?

Pois é, não sei quem foi o sujeito que inventou, há muitos anos, o apelido de Cidade Sorriso, porque não tinha nenhum sentido isso. Curitiba é uma cidade com flores? Afinal de contas tantas cidades são floridas, até mais que aqui. Por ser uma cidade alegre? As pessoas aqui não têm aquela alegria espontânea que têm as cidades litorâneas, pelo menos não que extravasem. As cidades litorâneas têm normalmente um humor maior, são mais soltas, até pelo relacionamento constante com outras culturas que o porto propicia. Agora Curitiba é uma cidade do alto da serra, colonizada por povos da Europa Central, mais introspectivos, povos de clima frio, mesmo os italianos que vieram para cá eram os do norte da Europa. Então não tínhamos nada que justificasse essa coisa de Cidade Sorriso. E isso é uma coisa antiga, não sei quem que criou, mas tem mais de 50 anos. Não era, portanto, nada que se referisse à revolução urbana, que é mais recente. Algumas coisas que são típicas de povos de regiões bem humoradas, como o carnaval, em Curitiba não existem. Então não vejo muito sentido para isso. 

Mas o curitibano tem humor apesar disso?

Tem, só que não é aquele humor arreganhado, Curitiba não é uma cidade que se dê a esse tipo de desfrute, ela exige um outro tipo de humor. Uma coisa típica é o humor polaco. As histórias e piadas de polaco são coisas que o resto do Brasil não entende muito, porque têm um final inesperado, às vezes brusco. Não é de fácil entendimento, é uma coisa que só quem conhece a cultura, quem já conviveu com descendente de polaco, acha engraçado. Outra coisa muito gozada é o seguinte, o polaco conta a história e ele é o maior perdedor.

É a coisa de rir de si mesmo.

Isso é uma demonstração de inteligência, pode ver que todos os povos que riem de si mesmo são muito inteligentes. Os judeus, por exemplo, têm grandes piadas, o humor judaico é muito interessante porque eles adoram fazer piadas deles mesmos. O polaco também tem isso. Mas só quem tem essa convivência com a cultura polonesa é que tem um pouco da sensibilidade para entender. E Curitiba é muito isso. Também tem a ver com a timidez, com o próprio caráter, a personalidade do povo. As pessoas são naturalmente tímidas em Curitiba. 

E isso se diferencia de homem para mulher?

Não tem diferença. Numa cidade em que as pessoas atravessam a rua porque está vindo um conhecido em sentido contrário… E é muito comum isso, a pessoa diz: ‘ih, lá vem o fulano, vou ter que cumprimentar’. E prefere atravessar a rua porque cumprimentar é difícil. O carioca não, ele chega, abraça, beija, ‘oh, quanto tempo não te vejo e tal’, pega na bochecha. Isso faz parte das pessoas. Aqui somos muito fechados. Somos mais duros, como escrevi em um poema sobre o carnaval de Curitiba uns anos atrás: somos um bloco de sólidas cadeiras. Não tem jeito de a gente descadeirar.

A colonização e o clima são os responsáveis pelo humor da cidade?

Não tenha dúvida, é isso mesmo. O humor tem muito a ver com o sol, não se pode negar isso. A gente não se dá conta de que o sol não aparece sempre, no inverno Curitiba é uma cidade cinzenta. Isso tem muito a ver com o humor. A depressão da solidão dos povos do extremo norte, todos eles são de climas frios e sem sol, e são pessoas deprimidas. Agora você veja o bambolear dos povos africanos, claro que tem muito a ver, o sol gera isso. 

Esse recato curitibano às vezes é confundido com boa educação?

Não acho que seja bem educação. Não vou nem na casa da minha mãe sem avisar, ligo antes, ou ela me convida. Não existe nada que me deixe mais irritado que visita na minha casa sem me avisar. E isso é tipicamente curitibano. Mas não acho que isso seja boa educação, é um recato natural, um subproduto do nosso jeito de ser.

Nesses anos em que você observa o comportamento da cidade, muita coisa mudou?

Acho que a cidade modificou. Essa coisa do bar da calçada já é um exemplo, Curitiba passou a ter outro tipo de vivência. Éramos uma cidade muito fechada, as pessoas se fechavam em casa às sete horas da noite, ficavam embaixo do cobertor enrolado e acabou. Mudou muito. Talvez o clima tenha melhorado um pouco e mudou a relação com a rua. Porque a convivência urbana é que faz com que as pessoas se soltem. É claro que um sujeito deprimido em casa não vai fazer relacionamento com ninguém. Agora, na rua, essas coisas são mais soltas, você conhece as pessoas, troca idéias. 

Essas características de humor são as mesmas nas diferentes classes sociais?

Estou falando aqui de uma Curitiba mais central, do Bacacheri ao Portão, do Boqueirão as Mercês. Não estou falando dessa nova Curitiba de bairros mais afastados e tal, até porque não tenho essa referência, não sou político, não fico percorrendo bairro. Acho que isso é uma coisa da convivência com as pessoas que são mais próximas, e é uma coisa mais intelectual também. Mas estou falando da população média em geral que formou a cidade. O começo do curitibano foi feito muito em cima de uma estrutura germânica. O comércio antigo se estruturou em cima de famílias de origem germânica. Isso também se dá muito no futebol. O Coritiba é formado por alemães, italianos e poloneses que foram se abrasileirando ao longo do tempo. Se você pega o Atlético vai encontrar toda a família Guimarães, Barrozo, Campos, famílias de origem portuguesa. Isso fez com que a cidade tivesse uma relação diferente, as famílias eram diferentes, eram realidades distintas. A dinâmica era outra. Volta à colonização. Não conseguimos nos livrar desses traços, mesmo que se queira não dá para romper com o passado e dizer que não existe mais. Não é que a gente seja refém disso, mas é uma referência muito forte.

O curitibano é hipócrita?

Não, acho que pelo contrário. Sempre foi muito conservador em relação a moral e os bons costumes, isso sem dúvida. Mas também é uma coisa típica de um povo mais encasacado. Você não consegue ser muito pudico em Salvador, as pessoas estão semi peladas, no Rio de Janeiro, na praia, em Ipanema. Tem essa relação do sol e do sal com o erotismo, isso existe sem dúvida. É muito mais erótico o sol e o verão do que o inverno. Tem aquela coisa de que em Curitiba o sujeito transa de meias. São coisas inimagináveis para quem é de uma cidade mais solta.

Entrevista com José Carlos Serroni

Arte efêmera

O teatro é o espaço onde a arquitetura encontra o mundo do faz de conta. José Carlos Serroni, um dos principais nomes da cenografia brasileira com mais de 130 montagens no currículo, é esse ano membro do júri da Quadrienal de Praga, maior evento na área, que acontece em junho. E, segundo ele, a cenografia brasileira é muito bem vista lá fora.

Desde 1967 a Quadrienal de Cenografia e Arquitetura Teatral, que acontece em Praga, Tchecoslováquia, é o maior evento do mundo na área. Artistas de diversos países se reúnem para mostrar suas melhores e mais inventivas criações. O Brasil, que participa desde a primeira edição, é reconhecido pela habilidade no uso dos materiais e soluções inovadoras para o cenário de espetáculos teatrais. Na 11ª edição do evento, que acontece em junho de 2007, o País se apresenta com o tema Nelson Rodrigues, nosso grande dramaturgo, nas quatro categorias: cenografia, figurino, arquitetura teatral e escolas de cenografia. O arquiteto e cenógrafo José Carlos Serroni, que tem um trabalho extremamente significativo nessa arte e atua como cenógrafo há mais de 30 anos, foi convidado para o júri do evento, depois de ter sido várias vezes o curador da mostra brasileira. Em entrevista exclusiva à AR-21, Serroni falou sobre seu envolvimento com a arquitetura efêmera que é a construção de cenários, sobre a Quadrienal de Praga e sobre a importância da cenografia brasileira.

Como você foi trabalhar com essa arquitetura efêmera que é a construção de cenários?

Comecei pela cenografia, acabei fazendo arquitetura porque já estava envolvido no processo. Fazia teatro amador, em São José do Rio Preto, e me encantei com a cenografia. Vivi muito tempo com um circo na frente da minha casa, emprestava móveis para as peças, e isso criou uma ligação forte com o teatro. Queria fazer cenografia e fui buscar uma escola que tivesse a ver com essa coisa toda. Em São Paulo tive a oportunidade de conhecer o Flavio Império e ele já era o grande cenógrafo, quem eu queria ser, o mestre. Acabei indo para a TV Cultura, onde fiquei seis anos e comecei a fazer cenografia de televisão. Isso na época rica da TV Cultura. Lá trabalhei com o Antunes Filho, com o Antônio Abujamra, com o Ademar Guerra, e fui me envolvendo cada vez mais com o teatro. Depois de um tempo comecei também a trabalhar com arquitetura de teatro. Fazer a cenografia, viver dentro do palco, conhecer os bastidores me deu know-how para me envolver nesses projetos. E dentro da cenografia faço uma série de outras coisas que ela permite, como exposições, shows, cinema e televisão.

Qual a diferença entre fazer a arquitetura cênica e a convencional?

No fundo é a mesma coisa. Os clientes são o autor que pede lá uma série de coisas para atender a dramaturgia que ele escreveu, o diretor que dá um sentido a essa dramaturgia, o produtor que sempre põe os limites nas coisas, que é como o cliente dizendo quanto se pode gastar. A gente ainda tem mais um problema que é o espaço limitado do teatro. É uma arquitetura mais maleável, mais de brincadeira. É um trabalho diferente da arquitetura tradicional porque trabalhamos com outros materiais e vemos os resultados mais rapidamente. Como é um pouco o mundo do faz de conta, a gente imita o concreto, o ferro, as texturas, os volumes e a espacialidade. Então é uma maneira diferente de arquitetura, não é aquela coisa construída, embora a gente use também os materiais da arquitetura na cenografia, porque também se constroem estruturas. Para ser um cenógrafo precisa ter o conhecimento de arquitetura, de resistência dos materiais, porque se tem a responsabilidade de criar algum espaço que, de repente, vai ser utilizado por 200 pessoas. Então não é tão de faz de conta.

O que te encanta nesse trabalho?

É o lado do teatro, de criar essas atmosferas, ter que envolver o público nessa coisa toda. Porque as pessoas na platéia não imaginam o universo que tem ali, os truques que se criam para fazer esse público acreditar naquela arquitetura que ele está vendo. Só que é tudo mais simples, desmontável, os materiais são outros, se trabalha sempre com a imitação da realidade, não se faz a realidade.

Incomoda o fato de fazer um projeto e de repente ele não existir mais?

Não, com o tempo a gente perde isso. Uma vez fiz um espetáculo do Antunes Filho, o Paraíso Zona Norte, foi um espetáculo de sucesso que ganhou muitos prêmios. A cenografia era uma espécie de estação de trem antiga, abandonada no tempo, uma grande estrutura que imitava ferro. E a última apresentação foi em Brasília e a gente deixou lá, demos para os alunos de um curso de arquitetura. Porque não dá para se apegar, não tem como guardar as 130 cenografias que já fiz. E é uma característica do teatro estar sempre se envolvendo com coisas novas. O grande envolvimento é na hora da criação, na hora em que se está inventando tudo aquilo. Claro que a gente se apega a alguns trabalhos, mas tudo isso passa. Aos poucos você consegue controlar um pouco essa coisa do apego.

Depois de 30 anos, você ainda participa do processo todo?

Sou um cenógrafo conhecido por estar presente. Sempre gostei do processo de continuidade, de estar com o mesmo diretor em vários trabalhos, para que eu possa evoluir no processo de criação com ele. Sempre fui muito de trabalhar com o mesmo diretor, acredito muito no trabalho em grupo. Fiquei com o Antunes quase 20 anos, fiz uns 15 espetáculos com eles, trabalho muito com o Abujamra e também com o Vladimir Capella.

Diretores conhecidos pela personalidade difícil.

Muito difíceis, mas é que tenho essa paciência, porque teatro lida com universo de muitas vaidades. Mas esses diretores difíceis são os que estimulam, são muito apaixonados pelo que fazem e incentivam a buscar coisas novas.

Você cuida da iluminação também?

Sempre participo muito do processo de criação da luz, porque luz e cenografia se completam. A cenografia é um trabalho que vive dos outros, quanto mais se interage com a direção, com os atores, com a luz, com o figurino, até com a música, melhor a cenografia acontece. Ela não pode ser um elemento, não pode aparecer muito, não pode ser a estrela do espetáculo, quando acontece isso está errado. Tem que interagir com tudo, fazer parte de um processo que é um espetáculo. E a cenografia e a luz, especialmente, têm que se complementar sempre. Um dos melhores momentos para o cenógrafo é ver no palco como a luz entra no espaço. Ela transforma. Fazer luz não é iluminar, isso é muito simples. Agora fazer a iluminação, o desenho de luz, é diferente.

Como aconteceu a Quadrienal de Praga?

Fui a Praga em 1985 e fiquei sabendo da Quadrienal. É um evento mundial, como a Bienal de Artes, só que voltada para o teatro. Fui pela primeira vez em 1997, com os trabalhos da companhia do Antonio Fagundes, a CER. A partir daí comecei a participar sempre. Por cinco anos fui o curador da mostra do Brasil lá. Em 1995 ganhamos o Grande Prêmio, o Golden Triga, dado a melhor mostra, quando foram apresentados trabalhos meus, da Daniela Thomas e do José de Anchieta e a exposição era toda interativa, a gente queria aproximar a cenografia do público. Esse prêmio foi uma coisa muito significativa. Na Quadrienal seguinte, de 1999, recebemos a medalha de ouro na área de arquitetura de teatro. Esse ano, eu cansei um pouco, porque é um trabalho insano tudo isso. Apesar de o Brasil ser um país respeitadíssimo lá, fazer isso sempre é um grande problema. Então resolvi passar a bola e o curador é o Antonio Graci. Também não poderia fazer a curadoria porque fui convidado para ser júri da Quadrienal, um júri composto por onze pessoas do mundo inteiro, e daí não se pode ter envolvimento direto.

Qual o tema desse ano?

O tema do Brasil é o Nelson Rodrigues. Ele é o nosso grande dramaturgo, tem trabalhos antológicos na cenografia desde o Tomás Santa Rosa. O marco da cenografia brasileira aconteceu em 1942, com O Vestido de Noiva, feito pelo Santa Rosa. Esse espetáculo é considerado o nosso divisor de águas. A partir de 42 a cenografia trabalhou com planos, com espacialidade. Quem está fazendo o estande é a Daniela Thomas, ela está criando o espaço que vai agregar essa exposição lá em Praga.

O Brasil é bem visto lá fora?

O Brasil sempre foi muito convidado para os festivais internacionais, levando um trabalho de cenografia interessante e importante. O que eles curtem é essa coisa de trabalhar com materiais diferenciados, encontrar soluções alternativas, o fato de a gente fazer cenografia só com jornal, com troncos de eucalipto, de trabalhar com materiais alternativos.  A cenografia dos países do primeiro mundo é muito construída, eles têm problemas com a segurança, é tudo muito planejado e isso acaba dificultando. Embora eu concorde, porque a gente não pode viver só do jogo de cintura, a gente tem que ter a técnica, o conhecimento, recursos para criar, mas por outro lado isso vai para um lado de exagero que acaba limitando o cenário todo. A cenografia brasileira é sempre muito festiva e cada espetáculo tem uma solução diferente.

Por que acontece em Praga?

Porque lá teve uma geração de cenógrafos na década de 50, entre eles o Josef Svoboda, que é considerado o grande cenógrafo que revolucionou o universo da ópera e da cenografia. Ele era um mestre. E a coisa foi crescendo e tomando um peso e hoje é um grande encontro. E Praga é a própria cenografia, é uma aula andar por aquelas ruas.

O público brasileiro reconhece a importância dos cenários?

Não. Fico impressionado com a maneira que a cenografia é tratada em outros lugares do mundo. Criei o Espaço Cenográfico, há dez anos, que é um laboratório de pesquisa, para divulgar a importância desse trabalho. Melhorou muito, mas ainda existe um desconhecimento do que é essa linguagem, do significado dela dentro do espetáculo, as pessoas confundem muito com decoração. Porque a cenografia no Brasil, enquanto linguagem, é uma coisa muito nova. Ela acontece dos anos 40, 50 pra cá e, naquela época, não tinha a personalidade tem que ter.

*Publicada na revista AR21 em 2007.

Futebol e baquetas: entrevista com Endrigo Bettega

Endrigo Bettega é baterista. Aconselha-se ouvir o que ele toca para entender melhor o que ele fala, mas dá para ter uma idéia do que é essa pessoa na entrevista que segue. Endrigo Bettega era um jogador de futebol, goleiro do Atlético Paranaense, que descobriu que não iria crescer o suficiente para se tornar o melhor goleiro que poderia ser. Optou por se dedicar à bateria, instrumento com o qual tinha afinidade, para se tornar um dos melhores bateristas do mundo. E conseguiu. Diz, sem ser minimamente esnobe, que está entre os dez melhores bateristas do mundo. Como que ele pode ter certeza? Simples: ele conhece os outros nove.

Depois de muito tempo se dividindo entre a Europa e o Brasil, ele resolveu morar definitivamente em Curitiba. É uma maneira fácil de se deslocar pelo sul e pelo sudeste do Brasil, onde toca com diversas bandas além de dar aulas, e também a possibilidade de ter definitivamente uma casa. O guitarrista de blues Nuno Mindelis, o trombonista Raul de Souza (com quem o baterista faz show 20 shows em junho, pelo Brasil, e, em setembro, em Berlim), as bandas Natocaia e Dr. Cipó são apenas alguns dos nomes que ele acompanha. Em 2006, Endrigo lança um dvd aula, no qual ele ensina o método “diga não à tendinite”. Leia a entrevista que o baterista cedeu exclusivamente ao planob, no fim do mês de abril.

Qual  a sua história?

Joguei futebol dos 12 aos 19 anos. Quando vim de Paranaguá para Curitiba, pelo Atlético Paranaense. Em 1989 parei de jogar pelo fato de que realmente fui fazer um teste para ver se eu iria passar de 1,82 ou 1,84 metros de altura, para continuar a carreira de goleiro, e o fato é que eu não ia passar de 1,80. Como eu tocava bateria esporadicamente, falei: ‘agora vou ser baterista’. E comecei a estudar 14 horas por dia. Uma média, não todo dia, mas durante três anos. Lembro que foi uma busca muito incessante, foi muita pressão. Foi como uma faculdade, fiz três faculdades em uma, porque acompanhava o que as faculdades estavam passando para os alunos e sempre estava à frente com relação ao estudo da bateria, aos rudimentos e aos instrumentos de percussão.

Você sempre foi tão determinado assim a ponto de querer ser o melhor no futebol e depois baterista, aos 19 anos?

Ah, sim, quando eu jogava futebol queria ser o melhor. A idéia era dar o melhor que pudesse naquela profissão. Quando fui estudar bateria, perguntei: ‘quem são os melhores do mundo?’. Fui atrás da metodologia desses bateristas, da história da música, buscar toda a informação a respeito de percussão e estudo dos rudimentos, a parte técnica. Tanto que consegui agora elaborar um método que é baseado no “diga não à tendinite”, porque nunca um aluno meu teve tendinite, e acho que isso acontece freqüentemente. As pessoas dizem que pararam ou vão parar de tocar porque tiveram tendinite e elas tiveram por um movimento repetitivo errado, feito por horas e horas estudando bateria. E cheguei a conclusão de que tinha uma maneira de tocar esse instrumento, ter anos e anos de trabalho e não necessariamente ter que parar por causa de um problema técnico.

Voltando aos melhores…

Então, falei: ‘quem são os melhores?’. São esses? Então eu devorei. Seis meses depois que comecei a estudar mesmo, já tava tocando música instrumental e, em 1991, fui para Suíça, tocar no Festival de Montreux, com o Grupo Sotak, com o Mauro Martins, o Paulo Branco, a Marilia Giller, o Mario Conde, e essa ida mudou totalmente a minha vida, tanto que fiquei morando lá, foram quase cinco anos lá…

Quanto tempo entre começar a estudar muito e ser profissional?

De 1989 a 1991, acho. Em 1988 já tava tocando mais ou menos. Só que tinha o problema de que não podia tocar no fim de semana porque a gente jogava, e o técnico sabia quando eu tinha tocado à noite.

Então as coisas coincidiram?

Aconteceu no último ano, em 1988. Já tava tocando porque todo mundo falava: ‘Endrigo, você tem que fazer música’. Foram pessoas importantes que falaram e mudaram a história. E é inevitável a música. Lembro que com sete anos recebi meu primeiro cachê. Foi do meu padrinho para tocar em uma festa de aniversário, com garrafa de refrigerante, espetinho de bambu e todo ano tinha que tocar, fazer aquele som.

Já era um amador da bateria enquanto  jogador de futebol…

Não tinha estudo, mas comecei a tocar tirando música, tinha toda uma história em Paranaguá com os meus amigos, de quando a gente se reuniu para juntar dinheiro porque a mãe de um deles vinha para Curitiba e ela levou para lá três instrumentos: uma caixa, um tarol e um par de pratos. Foi muito engraçado, foi o começo, acho que era 82, por aí. Não, foi antes, porque em 82 vim pra Curitiba. A gente estudava, eu ia e voltava pra Paranaguá, mas nessa ida e volta já tava começando esse processo. E o futebol foi bom porque como o goleiro trabalha perna e braço, para a minha coordenação como baterista teve tudo a ver. Deu estrutura de coordenação. E um dos meus pontos fortes quando jogava era o centro de colocação, o senso matemático, porque a matemática está ligada à música diretamente, principalmente a percussão, ao estudo da bateria. É matemática e quando você consegue conciliar a matemática com a emoção, é a perfeição. E sempre em busca da perfeição. Sou muito perfeccionista. Todos os trabalhos que tenho, todos os cds que gravei, já gravei uns 198 cds, hoje (26 de abril) fechei mais um, 199, lá em Blumenau. E estou indo amanhã para São Paulo, tocar lá com o Nuno Mindelis também e gravar o 200, que ele me convidou. Olhe só! Isso aconteceu hoje.

O que você vai gravar com ele?

O Nuno me contratou para eu gravar grooves pra ele. A idéia é a seguinte: toco uma levada e ele vai usar isso depois para montar as músicas dele. Como vários estúdios usam aqui em Curitiba as minhas coisas, o Gramophone, o Underdoog, o Ricardinho, o grande Ricardinho lá, manda um abraço para ele, o James do Jamute Audio, o Vitor, no Solo Estúdio, o Paulo, do Click, são os estúdios que trabalho freqüentemente, o Nico e o Trilhas Urbanas também. São todos esses, se você quiser colocar todos esses nomes…

Conte de quando você foi morar na Suíça.

Então, já tava tocando. Não voltei para o clube mais, em dezembro de 1989 foi a final do campeonato paranaense, contra o Matsubara, no Pinheirão, no último dia lembro de eu voltando num ônibus amarelo, aquele ônibus… E aquilo mudou, porque lembro que começou o ano e comecei a estudar um monte. E todo mundo falava: ‘ah, vai ter festa, vai ter não sei o que lá’. E eu não ia, ficava estudando. Daí, olhava as pessoas tocando nos lugares, e falava: ‘bicho, tem alguma coisa errada’. E voltava e estudava, estudava, estudava. E me assustei com a velocidade, porque parecia que eu tava só relembrando. Porque seis meses depois eu tava muito rápido, olhava o reflexo na janela e tava muito rápido. Mas é que peguei tudo, entrei dentro da história e estudei os melhores do mundo.

Quem eram os melhores do mundo?

Acho que são os mesmo ainda. O primeiro método que estudei foi Gene Krupa. É um método moderno até hoje, é de 1958 e moderno até hoje. Sempre uso em workshop porque lembro da abertura do Big Bang na minha mente quando entendi a matemática da música. Quando via a pirâmide das notas e como elas se subdividiam, era matemática clara, era a grande, depois virava duas, depois semínima, depois 8, 16, 32, 64. Esse cálculo já fechou. E depois, de tanto estudar, você começa a ter o supra ritmo, o estudo da polirritmia que é uma coisa que adaptei para a bateria, que é um estudo que é feito até na faculdade. As pessoas têm buscado isso nas aulas e nos workshops para entender o que faço, porque trabalho com metrônomo, com a matemática, só que trabalho com a polirritmia, então essa polirritmia pode ser acessada em qualquer lugar do mundo. É a mesma linguagem matemática e a mesma linguagem musical em todo o mundo. A idéia é a seguinte: é muito mais fácil se adaptar ao metrônomo universal do que o mundo inteiro ter que se adaptar ao seu pulso pessoal.

Voltando aos mestres…

Quando percebi isso no método de Gene Krupa, essa idéia da pirâmide, como abria na matemática, ele, o Buddy Rich, o Nenê, o Marcio Bahia que eu ouvia muito o baterista do Hermeto Pascoal, Dave Wechl, Vini Colaiuta, toda aquela bando do Chick Corea, que eu ouvia muito e amava muito também, Allan Holdsworth. Na época, eu ouvia também muita música clássica, que sempre foi um estudo que fiz, por ter vivido na Europa muito tempo, então pude ter acesso e gosto por isso também. Acho isso interessante porque as pessoas às vezes não gostam de um gênero musical  porque nunca puderam ouvir. E como a gente toca em lugares do interior, às vezes você toca uma música instrumental e ela toca de maneira inacreditável as pessoas. É muito interessante. Elas ficam emocionadas e passam a gostar… Mas dentro daquele estudo dos melhores do mundo estava também o Billy Cobahm. Quando fui para a Europa, durante os cinco, sete anos que estive participando do Festival de Montreux, pude ver e ouvir bandas, artistas e grandes músicos que eu ouvia na época, pude ver e conhecer pessoalmente. Então isso me aproximou muito do top que sempre busquei. O top ten, que a gente fala. É estar entre os melhores do mundo, mas não por competição e sim por competência e capacidade.

 Hoje você está entre eles?

Com certeza, por eu ter o discernimento de tocar e respeitar a essência de cada ritmo. Tocar ele dentro da sua essência respeitando a história do ritmo, o sotaque, e não só o ritmo como estilo musical. Isso é muito importante, porque se vou tocar blues, vou tocar blues mesmo. O Nuno curte, tanto que ele me chamou para gravar de novo agora, acho que estou fazendo realmente a linguagem do blues. Quando vou tocar baião, é baião. Salsa é salsa. Pude tocar e estudar com o Changuito, que tocou 25 anos no Los Van Van de Cuba. Na Suíça ele fez dez concertos e me adotou como sobrinho. Me passou a salsa mesmo, é o criador do Songo, é o grande professor dos cubanos. Pude conviver com ele porque ele tava com mil dólares, não podia levar o dinheiro pra Cuba e eu falava francês. Daí ele falou: ‘tenho mil dólares e quero aquele relógio e esse anel, que vou levar e compro uma casa em Cuba’. Fui lá, ele ficou eternamente grato e disse que iria me passar o segredo do Songo e da Salsa. Ele também me fez abrir essa idéia de tocar o jazz como jazz, como o americano toca…

Você diz isso por que os músicos geralmente misturam?

A interferência do ego: esse é o problema. O não-ego é um estudo infinito. Porque ao mesmo tempo em que se trabalha a personalidade, você tem que controlar a personalidade. Todo dia acordar e falar: ‘bicho: começou, zera tudo, olha pra frente’. Porque as pessoas se perdem mesmo com isso.

Com a vaidade.

Exatamente, elas desviam o foco do estudo. E na minha profissão, primeiro que é muito bom poder escolher o patrão, o contratante no caso, segundo é o fato de poder escolher o que fazer com música. Sempre digo que a minha profissão é uma faculdade paga, porque estou recebendo para dar continuidade ao meu estudo científico. Estou tocando lá no Festival de Montreux, no Festival de Milão, que toquei no Festival Latino em Milão, na França, no Caribe ou na África, que a gente saiu dois dias antes do Tsunami. A gente está dando continuidade a esse estudo, a essa ciência, estou recebendo para isso e podendo dar continuidade a essa evolução. Tenho certeza que estou fazendo parte da continuidade da evolução musical, e isso é importante pra mim.

Mas você está acima da média e diz de maneira muito tranqüila que está entre os dez melhores bateristas do mundo.

Ah, mas é porque conheço os outros. Quem conhece música sabe quem são os dez.

É algo surpreendente, até pelo fato de você ter dito que parecia que você estava relembrando.

De uma forma muito clara e assustadora, aliás. Não sabia como concentrar tanta informação, tanta coisa, tanta abertura. E eu era novo, realmente. Foi muito forte.

E qual a ligação entre a agressividade do futebol e a gentileza da música?

Mas a bateria é agressiva e gentil, porque a bateria tem que ser agressiva. E elas vieram juntas, intuitiva e naturalmente. Eu jogava futebol e, ao mesmo tempo, tinha acesso fácil ao ritmo, conseguia entender o que era a bateria, o baixo, a guitarra, porque é difícil para as pessoas entenderem. E, para mim, era muito claro. Tinha uma vizinha que colocava umas músicas, naquela época era a coletânea do Hollywood Rock, tinha Breaking all the Rules, Journey, The Police, U2, e eu ficava tirando as músicas e a vizinha lá na frente punha bem alto o som, e eu uhu, ela escutando e eu tocando junto. A nossa casa em Paranaguá era grande, tinha um escritório enorme e eu podia ficar lá, eles me trancavam lá. Até tenho que agradecer à minha família pela paciência. E realmente agradeço à minha família, aos meus irmãos e minhas irmãs. Foi até engraçado agora, depois que passou no Jô Soares, tava toda a família lá e minha mãe chegou e falou: ‘nossa, meu filho, me deu um orgulho de você!’. Achei tão boa essa relação com a música, porque a gente tem que dignificar a música. Acredito que as pessoas com o tempo vão ver a realidade, não tem como fugir da verdade. A música é uma arte em tempo real, e isso é muito legal em música. Esse trabalho em tempo real e o poder atômico da música, que é um estudo que faço também, que é o lado metafísico da música. Depois que percebi aquela grade lá – olha só, estou voltando no Gene Krupa –, vi o que estava intercalando. E quando percebi que existia um mundo inserido entre aquela matemática, alguma coisa que não era vista de primeira, por exemplo, entre o um e o 8 existia um sete que não aparecia, se tornou essa busca por esse leque infinito. A música indiana usa muito isso, o instrumento destemperado e o ritmo também destemperado.

O que é destemperado?

É a maneira de se calcular entre, as comas em relação aos tons e no ritmo, existe a coma rítmica também, com relação à parte rítmica. Hoje visualizo como se fosse uma grande tela do computador e sei que onde eu tocar o tempo, dentro daquele campo de visão, vou saber onde ele está, consegui perceber isso. Não só os pixels que tem naquela máquina 5.1, mas passar o 5.1 de pixels, e ter um acesso a esse campo invisível da música.

Que é onde o sentimento…

O sentimento, a alma e, para quem acredita ou não, que a gente pode vir fazendo um trabalho há muito tempo e que esse trabalho vai evoluindo. É um assunto delicado quando se fala em relação à música, mas sempre falo muito em Deus, faço muitas ligações com a natureza. Esse meu método de lubrificação das juntas para não ter tendinite é baseado no movimento dos animais, no movimento natural do corpo. E o futebol ajudou muito a perceber e ter estrutura de coordenação, porque o cérebro manda a informação, mas o corpo tem que estar apto e preparado em tempo real, muito rápido, para poder fazer. Cada vez fica mais veloz.

Como foi a evolução musical durante os anos que você passou na Europa?

Ah, sim, assim como pessoa também aprendi muito. É muito bom você aprender e tentar falar uma outra língua, porque é outro mecanismo que você vai usar e isso vai ser interessante porque vai ajudar a sempre tocar uma outra música. E quando não estou tocando estou estudando, lendo, leio muito, busco inspiração para a música, as pessoas às vezes nem entendem isso. Esses dias eu tava na livraria, daí chegou um cara que me chamou: ‘Endrigo!’. Bem alto, um escândalo, até o vendedor ficou sem jeito. Daí ele falou: ‘você veio comprar cd?’. Falei: ‘não, vim comprar um livro’. Daí ele: ‘Mas como?’.

Você conhecia ele?

Sim, tinha dado uma aula pra ele… quando era jogador ainda, acho que ele foi o meu primeiro aluno! Tenho que agradecer a ele, mas esqueci o nome dele. Mas ele tava exaltado, fazia tempo que a gente não se via. Daí, me despedi e fui comprar o livro. Tô lá olhando, quando chego na parte de esotéricos, escuto uma voz atrás de mim: ‘então é isso que você procura?’. Era o cara, hahaha…. era o cara! E uma família do lado ficou aterrorizada. Daí ele falou que o pai dele começou estudando muito isso, os esotéricos, e depois acabou virando católico! Mas a idéia não é essa. É que busco inspiração na leitura porque ela força a criação, força visualizar do nada uma situação. E isso é interessante, é como criar um filme que não existe. Essa relação de imagem com a música, sempre tive isso. Também essa relação de respeitar o público é uma coisa muito forte pra mim. Às vezes você tem que tocar o que as pessoas querem ouvir, porque existe um sentimento coletivo, existem padrões de sentimento coletivo que você define na música.

E…

Ah, outra coisa, na época que eu estudava, tomava muito mel e guaraná. De manhã tomava guaraná e durante o dia inteiro eu comia mel. Só não fiquei diabético porque deve ter feito bem para saúde… para agüentar o tranco. Porque era o dia inteiro!

Mas ninguém mandou você estudar o tempo todo, você fez porque quis.

Sim, mas é que era o seguinte: percebi que tinha que correr atrás só para passar por cima daquilo que já sabia. Porque tinha que chegar na crista da onda e ainda estava remando para entrar na onda, na analogia com o surfe. Agora estou na frente na onda.

É um caso atípico.

O Hermeto (Pascoal) fala uma coisa sempre. Estudo e sempre estudei muito a vida inteira, então a minha música é apenas resultado de muito estudo. E existe também, acho, um talento, um dom, que é uma coisa que não é palpável, que é um dom divino. Lembro que a primeira vez que assinei num hotel a minha profissão como músico, isso mudou a minha vida também. Porque antes eu não colocava. Existe um preconceito ridículo de que não se pode viver bem com música. E eu conheci o mundo, esse ano marquei outra turnê, em setembro estamos indo para a Alemanha, pra França, todo ano vou duas, três vezes pra Europa e para outros lugares do mundo. Tudo com a música. Porque estudei muito. E é importante você buscar um diferencial. Não importa como você chega lá, licitamente, honestamente. Isso é importante porque nunca esqueci o dia que o meu pai falou: ‘seja honesto’. Porque honestidade e respeito é a base de tudo, o respeito pela música, pelo teu público, ao teu trabalho e a você também. Porque, por outro lado, você escuta muito das pessoas, elas têm medo de que a tua música suma. Porque ela é fundamental na trilha sonora da vida daquelas pessoas. E essa é a minha idéia: fazer parte da trilha sonora da vida das pessoas, com essa linguagem que todo mundo entende.

Quando você é convidado para tocar nos festivais internacionais, você vai com uma banda específica?

Não. Trabalho para vários artistas, tanto que desses cds que gravei poucos foram repetidos. A minha criatividade está ligada diretamente com estar tocando sempre algo diferente. Eu via um cara que dirigia um bonde, na Suíça, e ele vai ficar durante 40 anos dirigindo aquele bondinho ou aquele trem, no mesmo caminho. E tenho a felicidade de poder trilhar por várias linhas de trem. Infinitas. É um infinito número de linhas de trem, infinitos caminhos da música, caminhos rítmicos, melódicos e harmônicos. Isso encaixa sempre, o lance da sua vida e da música. E existe também o fato da inteligência, é importante para fazer o seu trabalho. Existe um estudo que diz que o músico trabalha uma região do cérebro que normalmente as pessoas em outras profissões não usam. Vi uma pesquisa sobre isso, não lembro onde, mas com certeza me marcou. Os caras fizeram um estudo com um músico e é uma região diferente. E falei: ‘bicho, ali pode ser uma ‘antena’ que está ligada ao dom, com tudo que a gente fala, o talento’. E você precisa disso porque para conceber a arte tem que pensar diferente, tem que ter caminhos que não foram trilhados pelas outras pessoas. Quem vai assistir um show, quer algo inusitado para mudar a vida.

Pra você é fácil ser inovador tocando bateria?

Fácil não é, porque é muito estudo em seqüência. O resultado desse estudo de polirritmia vem de toda uma seqüência de pequenas descobertas, que vão se juntar num aglomerado e disso sai, no final do funil, aquela concepção. Que hoje a gente diz que o que conta é a concepção do artista. Não só o que conta, mas o que se pode trazer para o mercado. Você pode fazer a mesma levada antiga, mas colocar alguma coisinha diferente tentando mudar o mundo. Porque não é fácil quando você pega esse mercado. É difícil ouvir uma rádio hoje no Brasil, só o cara que trabalha num lugar e deixa o radinho ligado lá. Mas o que tenho notado, viajando por aí, é que o sentimento básico do ser humano é o mesmo. Isso parece óbvio, mas digo, existe a diferença da língua e da maneira como as pessoas vivem, mas a essência geral, a idéia do amor de família é o mesmo, e o senso da música é o mesmo. A maneira como você toca as pessoas, é um passaporte impressionante. E outra coisa que você consegue perceber quando tá na frente da crista da onda é que tem um mercado infinitamente grande ainda a ser explorado.

Mas você acha que isso acontece com você porque o teu trabalho é mais segmentado?

O fato de eu poder tocar onde quero e com quem quero faz com que eu também dê continuidade a essa concepção de trabalho com qualidade que estou fazendo. Não é que não tenham trabalhos de qualidade, mas estou buscando construir a pirâmide com uma base sólida. Então não adianta eu ir lá, fazer um trabalho e não ter estrutura, porque quando eu aparecer lá em cima da pirâmide, não tem como voltar.

O que seria o lá em cima?

Pra mim, é como sempre estive, sempre tive feliz, sempre tive tudo, nunca me faltou nada. Sempre tive amor em abundância e amizades. Sempre disse, cara, prestem atenção, tenham amigos, amigos mesmo, isso é uma coisa muito difícil de ter, amigos do coração, de alma, e ser amigo de todo mundo, do teu pai, da tua mãe, da tua família, porque isso é uma coisa que fica. Casa você compra, apartamento, avião, barco, carro, instrumento, só que a amizade é uma coisa muito especial. Acho que as pessoas têm que prestar mais atenção nisso e serem menos imediatistas. Aprendi muito com a vida. Quando eu errava, falava: ‘bicho, lembre’. Voltei a errar na mesma coisa e falei: ‘calma, pelo menos tô lembrando, tô consciente, até uma hora que vai dar certo’. Pelo menos se liga nisso, não fica passando por cima, sabe? E a minha vida sempre foi boa, não tenho do que reclamar. Posso ir onde quero, viajo muito, até chega a ser um problema isso, cansa muito viajar. Agora vou ficar no Brasil, vou morar no Brasil mesmo e só viajar. Eu vou, busco ‘dinheuro’ e volto, hahaha. Vou levar a música do Brasil lá para fora, mas quero conhecer ainda mais o Brasil que é muito grande e quero conhecer também a América do Sul, porque é um celeiro rítmico muito grande. A Europa oferece a parte melódica e harmônica da música muito boa, mas a parte rítmica tá pra cá, tá nas Américas.

Paga-se melhor músico lá fora ou aqui?

Acho que os mesmos 100 euros que você ganha lá equivalem aos mesmos 100 reais daqui, quando você entra no supermercado. E é sempre a mesma coisa.

Quando você começou a trabalhar com Nuno Mindelis?

Começou há uns três anos, ele me convidou para tocar e eu toquei. Falei: ‘o que você quer que eu faça?’. Ele: ‘isso’. Eu fiz e ele ficou abismado. Ele falou: ‘como você consegue?’. Falei: ‘ué, estou fazendo o que você quer’. Estou passando por cima do ego. Por isso que digo sobre o problema do ego. Às vezes as pessoas falam: ‘ah, por que você não tá lá com o Jota Quest ou com a Madonna?’. Bicho, a minha música é muito especial e sei onde estou trabalhando. Estou querendo ajudar a estruturar e a profissionalizar muitas áreas que são amadoras na música no Brasil. Meu trabalho é de base, estou ajudando a abrir o olho de muita gente. É um trabalho altruísta, o meu trabalho é altruísta. Porque depois que você entrou no caminho, o caminho vai e você não pode parar. As pessoas esperam cada vez mais de você. Sempre friso para as pessoas chegarem e olharem no olho de quem está ali vendo um show, sabe, que bom que você gosta da nossa música, porque é para você mesmo que estou fazendo. É para a tua alma ficar feliz. É uma cura. E como meu pai é médico, sempre usei a idéia da música como cura.

Você sempre pensou assim?

Já fui menos, lá na Europa já fui menos, porque tava cheio de estudo, de idéias, então quando tudo funciona você quer impor. Mas depois com a experiência, fiz 36 anos agora, estou pegando o supra-sumo da minha música, estou arrumando ela. Para organizar a qualidade e direcionar os momentos de grandeza da música. De chegar e falar assim: ‘isso é genial, isso é genial’. E já sacar. Com o tempo você vai vendo que realmente há espaço para o cantor ou o solista, por exemplo, o Proveta, o Carlos Malta, o Raul de Souza, que a gente faz turnê direto…

Mas você já quis aparecer mais que todos?

Lógico, mas quem disser não está mentindo. Isso que digo, o ego, ele infla e vai lá em cima. Porque a gente precisa que digam ‘você é bom’. De certa maneira esse ego te ajuda a ir pra frente, ele te joga e acho isso bom. Tem vários tipos de humildade e vários tipos de ego. Mas é saber controlar o ego, na hora da humildade ser humilde, mas na hora de ser ríspido, fazer as pessoas compreenderem o por que da parte do arranjo, o por que de tocar daquela maneira, você usa também. Certo? Então são várias maneiras. O que digo é que no geral tem que controlar o ego para que se possa lidar com os vários tipos diferentes de pessoas e músicos que você vai trabalhar. E digo que hoje estudo sociologia. Porque consigo falar seis línguas e isso facilita o trabalho. Entender o que o cara quer que você toque, o que ele não quer que você toque, que geralmente é mais importante, isso facilita muito. E digo que é um trabalho de sociologia que a gente faz, muito grande.

Você ensaia?

Depende. Tem coisas que você tem que ensaiar porque sempre falo: são músicas especiais para pessoas especiais. A experiência faz com que você entenda mais rápido. Prefiro leitura, facilmente com leitura de partitura gravo um cd de 12 ou 13 músicas em um dia, você sabe o ritmo e tal e começa a entender a escrita dos arranjadores. Mas têm trabalhos que tenho que ouvir.

Quem você acompanha hoje em dia?

O Nuno Mindelis, o Raul de Souza, o Dr. Cipó, o grupo Natocaia, tem um projeto do Astor Piazzolla que está fortíssimo, toda quinta-feira em Florianópolis, isso é demais. São músicas do Piazzolla interpretadas, cai a casa. Depois vou para a Europa em setembro, tocar com o Raul de Souza, música instrumental, mais brasileira, vamos tocar em vários países. Por isso que agora parei no Brasil, em Curitiba. Porque Curitiba está estrategicamente entre o mercado do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e o mercado de São Paulo, que tenho tocado bastante, e no Rio. Curitiba fica bem no meio da passagem, vendo de cima. Essa idéia de ver de cima é bacana, você olha de cima e vê o seu pontinho se deslocando, sempre usei isso.

Você se diverte, Endrigo?

Muito, fico impressionado. Impressionado. Às vezes até é demais. Tudo dá certo, mas é que tem que ser muito competente pra isso. Só que abri mão de um bom tempo da minha vida pra poder estar colhendo isso e juro que eu sabia. Lembra quando falei pra você que eu queria ser o melhor do mundo? Eu sabia que tinha um tesouro lá na frente. E que um dia eu iria poder fazer o que eu quisesse. Fui muito disciplinado. E mesmo hoje em dia estudo o dia inteiro.

Não tem nada a ver com o músico-boêmio?

Não, não toco mais à noite, só faço grandes shows. Consegui isso, consegui fugir do barzinho de cenzão. Tem que escrever isso. Isso é ridículo. Conseguimos agora aumentar o cachê num bar para 150, uma vitória, hoje recebi a notícia que eles vão pagar 150 para cada músico. Sou o responsável por essa busca por respeito, tem que ser 150 no mínimo, já é um passo.

E é pouco.

É pouco, o cara tem que vir, trazer equipamento. Daí volta pra casa, depois volta pro bar, nessa aí já gastou 30 de gasolina. Por isso que agora também só faço ensaio pago. Teve uma época que falavam que eu não gostava de ensaiar, mas não é que não goste de ensaiar. Porque vou lá ensaiar, só para chegar com o meu carro você nem imagina quanto gasto de IPVA. Agora é só ensaio pago, e está ajudando várias pessoas que estão fazendo isso também. É essa a estrutura também de base da profissão. Tem o estudo técnico, o pessoal, o espiritual, a busca pelo perfeccionismo, a cobrança e a pressão, que é incessante e diária. As pessoas sempre querem te testar, é impressionante como aparece. Mas agora quero ficar no Brasil, estou com 36 anos e quando chegar nos 40 quero estar como imaginei mesmo. Porque a minha casa é o mundo, é continua sendo.

Conte do dvd aula que você está fazendo.

Esse ano vou fazer o meu dvd aula, isso é legal. E aí que está. Penso assim, tem que ser um trabalho sério que não coloque em risco a integridade física e a integridade moral, e que seja educativo, por isso só estou fazendo agora. Esse dvd é um método de ensino baseado nessa história de não tendinite.

Você tem tendinite?

Não tenho e olhe que toco horas, toco muito. A idéia é abrir uma escola no futuro para ser um consultório, porque sinto isso. Quando vou dar aula em Santa Catarina, são oito aulas no mesmo dia. Começa de manhã, um aluno entra, deu 50 minutos vem outro. Um entra atrás do outro, é um real o minuto. É um consultório, é impressionante. Qual é o teu problema? O meu problema é de ritmo. Sim, vamos lá. Entra outro. Qual o teu problema? Vai, vamos lá… Juro, uma hora pensei que era despacho, um consultório, eu só falava: ‘próximo’. Vários alunos me pagam para fazer perguntas, só para conversar. Quer ir para a Europa, quer conselhos. O problema é que às vezes são alunos que estão cursando a faculdade. E sei que os pais querem que ele termine. E tenho que fazer a função de fazer ele terminar a faculdade e conciliar a música. Porque se ele deixar a faculdade, os pais não vão entender e vão direcionar o problema para o professor da música que tirou ele daquilo, e não é isso. Se ele pode terminar, vou aconselhar que termine. Deixe a família feliz, porque as pessoas têm que estar bem em volta. Você não pode ser egoísta, aprendi muito isso também. Me importo muito com o bem-estar do outro, isso às vezes é até um problema, como já foi, de eu ser mal interpretado. Mas me importo muito com o bem-estar das pessoas e é isso que tento passar pros alunos. E não vá passar por cima de ninguém, porque ninguém precisa disso. Têm infinitas linhas de trem que você pode trilhar.

*Publicada no site O Plano B.

Mulher Maravilha

O apelido dado por um jornalista ainda na década de 70 logo após a estréia no programa do Chacrinha é a marca registrada de Elke Grunupp, a espalhafatosa Elke Maravilha. Tema de documentário assinado por Julia Rezende (filha de Sergio Rezende, diretor do filme Zuzu Angel), aos 62 anos Elke está cada vez mais ativa e espontânea, o que para ela significa estar mais russa. Esse ano ela foi tema da exposição Elke Quântica Maravilha, atuou na novela Luz do Sol, da TV Record, estuda uma proposta para o programa teen global Malhação, se apresenta pelo Brasil com o espetáculo Do Sagrado ao Profano, além de fazer shows solo, gravou uma participação em um disco em homenagem a Itamar Assunção e recebeu uma proposta para interpretar Deus em um filme. Em todos os trabalhos coloca a sua essência: “mais importante que viver é conviver”.

Nascida em Leningrado, Rússia, em 22 de fevereiro de 1945, Elke chegou com a família ao Brasil aos seis anos de idade e foi parar em uma fazenda no interior de Minas Gerais, em Itabira do Mato Dentro, cidade de Carlos Drummond de Andrade. Poliglota, na década de 60 despontou como símbolo de transgressão, tanto que foi punk antes mesmo de o conceito ‘faça você mesmo’ chegar ao Brasil. Trabalhou como modelo e em 1972 se encontrou ao lado do velho guerreiro Chacrinha. Aceitou a proposta para ser jurada do programa sem ao menos saber o que lá acontecia – seu pai não deixava ninguém ver televisão em casa – e tornou-se definitivamente Elke Maravilha. Elke é pura atitude – mas não gosta dessa palavra, prefere o termo postura –, divertida e de bem com a vida. Elke são várias em uma, como você acompanha nessa entrevista.

No documentário Elke, da Julia Rezende, você conta a sua vida?

Olha, não sou eu contando a minha vida não, o que achei até melhor, porque muitas vezes as pessoas ficam conversando com as próprias memórias. Eles queriam saber eu hoje. Acho o passado muito bom, meu passado foi muito bom, mas espera aí, e agora? Quando vou pro Egito, vou ver os monumentos, as pirâmides, as esfinges, mas quero saber como eles vivem hoje. Porque se hoje são uma merda não adianta nada, o passado foi o passado, né? Então achei legal porque é aqui e agora. E aí surgiu a exposição Elke Quântica Maravilha, o Rubens Curi foi o idealizador e curador, e ele convidou a Julia para que esse documentário ficasse passando o tempo todo lá. Olha, tinha gente que saia chorando da exposição.

Você acabou de fazer uma novela…

Estava aprendendo novela, foi a minha primeira novela (Elke interpretou a personagem Urânia, na novela Luz de Sol, da Record). Fiz uma novela em setenta e poucos na Tupi, mas lá eu era a Elke e falava o que queria a hora que queria. Não era um personagem, era eu mesma. Então novela mesmo, de cabo a rabo, foi a primeira.

E você gostou?

Achei interessante, é um pouco rápido demais pra mim, porque como sou uma atriz bissexta, às vezes gostaria de ter um pouco mais de direção, porque novela não dá tempo de dirigir, a gente tem que se virar. E não sou Fernanda Montenegro, né? 

E o convite para integrar o elenco da Malhação?

Eles me convidaram e o meu produtor está negociando. Não está nada certo ainda.

 Você assiste a Malhação?

Nunca gostei muito, agora principalmente está meio ruimzinha, mas eles querem reativá-la, sabe? Agora acho legal uma coisa com jovens…

Você gosta dessa interação com pessoas em geral…

É, tenho sorte porque tenho feito amigos jovens. Tenho muita sorte com amigos, aliás. Há anos fui a uma cartomante, era dessas cartomantes rápidas, não era daquelas que ficam procurando em você as respostas que vai dar. Ela abriu e falou: nossa, estou impressionada, nunca vi uma pessoa que tem tantos amigos que matam e morrem por você. É verdade, tenho mesmo, tenho muita sorte. E a gente tem a prova quando está fodido, né? E tive a prova quando tava fodida. Meu amor, ninguém fugiu, nem marido, nem nada.

O que aconteceu?

Há pouco tempo teve uma época bem fodida, operei a cabeça do fêmur em janeiro e a situação estava bem difícil mesmo. Mas não teve problema porque tenho amigos.

E sobre a peça do Sagrado ao Profano, você fez modificações durante esses anos?

Sempre, não pode bater na mesma tecla sempre não. Porque é a tal coisa, meu amor, ficar velho é bom, mas ficar ultrapassado não pode. Colocamos algumas canções ou textos novos. Algumas coisas são absolutas, não se tira, agora algumas podem ser remanejadas.

Você sempre está em busca de um desafio?

Com certeza. Por exemplo, estamos cantando agora Antonio Nóbrega. Para alguns espetáculos mais populares estamos fazendo punk rock. E faço muito bem punk rock, sou a vovó punk. 

Que é uma volta ao seu começo, porque você era punk antes de existir o punk.

Exatamente. Canto muito bem punk rock, porque têm muitas músicas que tive que ensaiar exaustivamente e essa foi de prima. Todo mundo ficou passado. O nome da música é In den Kasernen. É uma coisa, essa música é foda, é porrada. Ela é muito forte.

Vocês vão gravar um disco do espetáculo?

Vamos gravar sim, acho que ano que vem.

Você se considera uma artista completa?

Ah, não sou nada, sou uma eterna aprendiz, meu amor, não tem nada de completo.

E quando você começou a cantar?

Faz pouco tempo. Antes cantava brincadeirinhas, mas agora estou fazendo a sério.

Tanto que você participou da ópera Pierrot Lunaire, dirigida pelo Gerald Thomaz.

Exatamente, participei cantando duas músicas. Foi ótimo, ele é divino, é bom trabalhar com alguém que ensina a gente, né? A gente precisa aprender. Gente que não me ensina nada falo: “pô, que pena”. Porque a gente tem que estar aprendendo todos os dias.

As coisas na sua vida nunca foram planejadas?

Nada planejado, nesse ponto sou brasileiríssima. Sou brasileiríssima de coração, mas o DNA é bem russo. Puta que o pariu, quanto mais velha fico mais russa fico, sabe? O brasileiro é muito politicamente correto e o russo é o oposto. Fui criada em Minas e mineiro é em cima do muro, né? Mas não adianta, não consigo ficar em cima do muro de jeito e maneira. Na realidade as coisas não são quando a gente quer, são quando está na hora. E como não planejei, foi quando tava na hora. Para mim, parece que o garçom passou numa festa, a vida. O garçom passa: você quer quibe ou coxinha? Falei: agora quero quibe. Outra hora, falei: agora não quero nada. É porque nunca soube o que ia ser quando crescesse e até hoje não sei. Só que sei o que não quero, entende? O que não quero sempre soube muito bem.

E o que você não quer?

Ah, são muitas opções. Não queria virar um objeto sexual. Porque todo mundo falava: ah, você é tão bonita, não sei o quê. Tá bom, mas isso foi a minha mãe, o meu pai e Deus que fizeram. Então quero saber… Para não dizer que Deus errou na mão com a gente, que errou, digo que ele fez as pessoas incompletas. Mas ele errou na mão com a gente sim. Todos os animais sabem para que vieram, já vieram prontinhos, com banho tomado. Nós somos uns macacos pelados ridículos feios para danar. Somos muito feios, pode ser a pessoa mais linda do mundo, mas somos feios pra caralho. Gente, como a gente é feio! Então a gente tem que se melhorar dentro e fora, né?

E você então acredita no acaso?

Não sei se chama acaso. Acredito que a mãe natureza detém a trama, não somos nós que detemos a trama. E não posso, nem tenho o direito, de atropelá-la. À mãe natureza eu me submeto.

Nesses 34 anos de carreira apareceram seguidores?

Ah, tentaram. Mas não deu pé. Por exemplo, alguns artistas são até clonáveis. Um exemplo extremo, a Marilyn Monroe. Ela é absolutamente clonável, né? Usava sempre aquele cabelo, a mesma maquiagem, aquele tipo de roupa. Agora como vão me clonar se um dia estou azul, outro verde, outro roxo, outro de coroa, outro punk? Não tem como, né? E não é só fisicamente. O que é fora, é o que é dentro, não é uma fantasia.

Você é a Elke Maravilha da hora que acorda até dormir?

Claro, mas claro que não acordo bonitinha, já tenho que dar um jeito em mim.

Como é um dia na sua vida?

Varia, tem dia que não faço absolutamente nada. Fico aqui na minha cama, de preguiça, olhando um filme, olhando, nem vendo, como na cama, só saio parta fazer xixi e mais nada. Outros dias eu bordo, bordo muito bem. Inclusive na exposição só foram expostas coisas que ou fiz ou interagi. Nada ali foi coisa que comprei pronta, porque acho que seria desonesto. 

Hoje o seu trabalho é o Sagrado ao Profano?

É, e também faço muitas apresentações pelo Brasil. Viajo muito, graças a Deus. O Sagrado ao Profano é mais complicado porque tem uma estrutura maior, então nem todo mundo pode contratar. Agora sozinha dá para contratar mais fácil, né?

Como o tema da revista é atitude, gostaria de saber o que você pensa sobre algumas coisas. O casamento, por exemplo.

Não gosto muito da palavra atitude, posso te dizer? Porque é uma coisa americana e estamos macaqueando demais os americanos. Gosto mais de postura, é mais Brasil, mais para nós, sabe? Sou defensora do nosso país. Mas sobre o casamento. Olha, gosto de casamento, não gosto de acasalamento. Porque temos acasalamento demais, né? Não temos casamento, porque casamento não é só sair fodendo, você não fode 24 horas por dia. É ser companheiro da pessoa, segurar a onda da pessoa, a pessoa segurar a sua onda, é conversar, é uma pessoa estar na engrenagem da outra. 

E sobre as artes?

Gostaria que a arte continuasse sendo o que Nietzsche disse, que a arte vem para salvar a gente da dura realidade. Agora, estou começando a ver que a arte não está mais salvando porra nenhuma. Porque é o seguinte, você está em um teatro, no palco tem um mendigo ou um bêbado, né? E todo mundo que está assistindo diz: que personagem, que maravilha, que não sei o que! Chega lá fora, vem um bêbado e ele chuta o bêbado ou chuta o mendigo. Quer dizer, salvou de que a arte? Ah, minha filha, me desculpa, então não está adiantando porra nenhuma. Bom, lido muito bem com mendigos e com bêbados. Mas não foi a arte que me salvou não.

Foi a educação.

Foi a minha educação de casa. Meu pai falava muita coisa interessante sobre educação, ele educou muito bem a gente. E não é adestrar, porque normalmente as pessoas são adestradas. Tem comer bonito, sentar bonito, claro que eles também tentavam que a gente sentasse bonito, mas não conseguiam… Por exemplo, aconteceu uma vez de eu mexer em ninho de passarinho e, meu Deus, nunca mais fui mexer em ninho de passarinho. Apanhei feito um cachorro, tinha que apanhar mesmo. Meu pai era assim: falava duas vezes, na terceira ele não falava não, era porrada mesmo. E nenhuma das porradas que levei foi à toa. 

Você acredita que educação é uma premissa básica para mudar a situação?

Com certeza, mas não é instrução não. A gente chama instrução de educação, mas educação é em casa. Porque se a gente nascesse bom não precisava ser educado. Isso é uma grande verdade. Ninguém nasceu bom não, a gente nasce puro e as pessoas acham que pureza é bondade, mas pureza não é bondade, porque pureza significa que todas as tendências estão latentes. E depois tem uma coisa, a gente que vive em cidade grande, às vezes, meu amor, a única testemunha é a consciência. O vizinho não sabe o que você faz, tua companhia é a tua consciência. E quem não tem consciência faz o que? O que quiser.

E qual a sua postura em relação à moda?

Gosto muito de pegar coisas culturais lá do passado e remeter para o futuro. Então pego elementos kabuki (maquiagem usada pelos atores no teatro japonês), sempre gosto de pegar o lado masculino, não o feminino. Pego os elementos vikings e remeto pro futuro, os elementos orientais e trago para o futuro. Sempre uma releitura. 

Tem a ver com as suas ideologias, não sei bem se ideologia é a palavra…

É ideologia sim, sei que tenho 62 anos e hoje se diz que depois dos 40 é ridículo ter ideologia, mas não é ridículo não. Não sou cínica, não tenho talento para ser cínica. Agora claro que a ideologia tem que estar no coração. Na hora que ela sai do coração, vai para mente, vira bandeira e isso nunca resolveu. Vide nazismo, comunismo, PT saudações, vai se foder, né? Eu achava que tinham ideologia, mas olha aí a ideologia. Porque foi de bandeira, não é de coração. Porque eu, de coração, tenho que saber que não tenho que explorar ninguém, não é a minha ideologia de cabeça. De coração, tenho que saber que não posso puxar o tapete de ninguém, que não devo maltratar as pessoas. Virou ideologia no papel e em bandeira, amor, fodeu tudo, sempre.

E política.

Sinceramente, gostei muito daquela charge que teve no Jornal do Brasil, quando botaram uma foto do Congresso e disseram assim: Bin Laden, também temos torres gêmeas. É, tá faltando um Bin Bin para nós. Porque tem uma hora que alguém tem que reagir, porra. Mas é ridículo hoje, tá todo mundo muito cínico. E gosto dos cínicos enquanto Diógenes, o filósofo, enquanto Nelson Rodrigues, fantástico, agora cínico de merda, ah, meu amor, até o nosso presidente ficou cínico. Agora não tem talento para isso, né?

O homem por trás das mulheres

Em uma edição dedicada ao universo masculino entrevistamos o homem que está hoje por trás das mulheres que aparecem em ensaios sensuais na revista Playboy. Edson Aran, 44 anos, casado, pai de um filho de cinco anos, jornalista e diretor de redação da revista masculina que mais vende no Brasil, conta que o seu trabalho é normal, como outro qualquer. Se você pensa que ele fica cercado por mulheres lindas e nuas o tempo todo, e que elas passam o dia entre a piscina e a mesa do diretor, leia a entrevista abaixo e saiba que o estilo playboy pertence apenas ao fundador da idéia, Mister Hefner, mas que ser diretor da Playboy tem também as suas compensações.

A idéia da revista Playboy nasceu em 1953, criada pelo americano Hugh Hefner. A primeira capa trazia a atriz Marylin Monroe e a fórmula de aliar textos inteligentes às fotos ousadas de mulheres bonitas deu certo. Muito certo. Hoje a revista tem 23 edições internacionais e a brasileira é a segunda no ranking de importância, só perde para a americana. Há 32 anos a Playboy faz a alegria do universo masculino brasileiro, de empresários a borracheiros, pois a democracia nesse caso é incontestável: todos, que comprarem, têm acesso aos ensaios fotográficos.

Edson Aran (e o Aran é uma abreviação de Arantes, o que rende muitas piadinhas sobre o parentesco com o rei do futebol) é um cara com humor refinado, autor de livros como Imbecilismo, Conspirações – Tudo o Que Não Querem Que Você Saiba e A Noite dos Cangaceiros Mortos-Vivos, que já lhe renderam elogios de Millôr Fernandes. Há um ano e meio está na Playboy, revista que vende mensalmente 300 mil exemplares. Aran começou a carreira na editora Abril fazendo atendimento ao leitor da revista Contigo. Virou repórter, saiu e voltou da Abril várias vezes, foi redator-chefe da Vip por seis anos, ficou na Sexy por dois e recebeu o convite para dirigir a Playboy. Ou seja, mais ou menos dez anos dedicado a esse tipo de entretenimento. Na entrevista que segue, realizada por telefone, Aran fala sobre as aptidões masculinas, os ensaios fotográficos e os mitos da publicação, entre eles o uso do Photoshop, um programa que pode melhorar a estética feminina. 

Como é ser o diretor de redação da Playboy?

É como editar qualquer outra revista, a única coisa que diferencia é que a capa é fundamental na venda, então a gente precisa de uma capa que tenha gostosura e notabilidade. No fundo, esse é o grande diferencial. O cotidiano é como o de uma redação qualquer, não tem garota nua pulando na piscina. Só quem leva uma vida de Playboy é o mister Hefner, o fundador, os outros simplesmente trabalham na Playboy, é diferente.

As pessoas pensam que você tem acesso a mulheres o dia inteiro…

Sim, todas nuas aqui correndo, mas infelizmente não é assim, é uma redação como outra qualquer.

Mas é a redação de uma revista que, dentro do seu segmento, é a de maior destaque nacional.

Nesse aspecto sim, a Playboy é uma das maiores revistas do Brasil, é o maior título mensal da editora Abril. A Playboy hoje tem 23 edições internacionais, a primeira é a americana e a segunda é a brasileira. Mas acho que dirigir a Veja ou a Exame é muito mais complicado. Enfim, a Playboy tem um peso, é a revista mensal de maior venda da editora Abril, então exige uma certa responsabilidade. 

O que diferencia a Playboy das outras revistas masculinas?

A Playboy é a Playboy porque tem uma história gloriosa no Brasil. A Playboy brasileira é uma revista que tem os melhores ensaios do mundo – e digo isso com segurança porque conheço as edições internacionais. Além dessa preocupação com fotografia, a brasileira sempre teve uma preocupação grande com o jornalismo. Os entrevistados que tivemos nesses 32 anos de história são fabulosos, pode-se ler a história do Brasil pela Playboy. A qualidade das reportagens sempre foi muito alta. Isso traz responsabilidade porque temos que zelar por isso. Não é por acaso que ela é a maior e lidera o mercado há tanto tempo. É porque ela é, de longe, a melhor do segmento.

Vocês realmente sabem de que os homens gostam?

Acho que sim. A Playboy foi a primeira revista, e daí estou falando da edição americana, a falar de moda, de gastronomia, de como o homem tem que se comportar. Todas as outras revistas nascem da Playboy. Acho que é a única que tem uma filosofia muito clara sobre o que é ser e participar do mundo Playboy. No fundo a Playboy é uma celebração do capitalismo, dos prazeres. Você tem o direito de viver bem, de comer bem, de se vestir bem, de ter as melhores mulheres, porque afinal você trabalha para isso. Essa é a filosofia do Hefner, e é isso que a gente tenta manter. Não é uma coisa hedonista burra porque tem essa preocupação intelectual de ter os melhores textos, de ter discussão, não é o hedonismo pelo hedonismo, é uma coisa mais elaborada, sempre foi. Não é invenção minha e não é mérito meu porque estou aqui hoje, mas a Playboy sempre foi isso.

Qual o critério de seleção para as mulheres da capa?

Existe uma lenda de que a Playboy sempre teve celebridades na capa e isso é mais lenda do que realidade. Se for comparar a linha dos anos 80, que acho que é a década gloriosa da Playboy, as atrizes famosas eram minoria, tinha um atriz famosa por ano, o restante das capas eram modelos, a musa do verão, a prima de não sei quem… Todas as primas da Xuxa apareceram, a Luiza Brunet foi praticamente inventada pela Playboy, a  Monique Evans também, quer dizer, a revista lançou muita gente. Hoje funciona do mesmo jeito, com a diferença que tem o Big Brother e não se pode ignorar isso. O programa é um fenômeno de audiência e as mulheres já entram no Big Brother querendo sair na Playboy. O jogo já é esse e seria muita ingenuidade se a gente desprezasse essas mulheres, aliás, a gente não deve fazer isso, elas vendem bastante. 

Mas qual o critério básico?

Mulher gostosa e famosa, que tenha notoriedade. Seja porque é uma atriz, está em um reality show, envolvida com algum escândalo político ou como foi a Ana Paula Oliveira (capa de julho), que é uma bandeirinha que se destaca numa área esportiva eminentemente masculina.

Por sinal, ela criou muita polêmica…

Criou polêmica no momento em que a gente assinou o contrato, ela virou notícia no mundo inteiro, tenho várias solicitações das Playboy internacionais para republicarem esse ensaio. Isso acontece com bastante freqüência, os nossos ensaios são muito cobiçados pelas parcerias.

Quem é o principal fotógrafo de nu brasileiro?

O JR Duran, acho que ele é o principal fotógrafo de nu do mundo, está entre os melhores do mundo, se não for o melhor. É importante ter ele aqui. Claro que a gente tem outros fotógrafos excelentes, como o Luís Crispino e o Maurício Nahas. Particularmente, gosto muito do trabalho do Duran, ele tem espontaneidade, consegue tirar um calor do ensaio que nem todo mundo consegue. Ele alia técnica à quentura, técnica à malícia, que é uma coisa rara.

Sem deixar a coisa vulgar?

A vulgaridade está nos olhos de quem vê. A Playboy nunca é vulgar, nunca. Porque existe um cuidado de produção, de fotografia, um cuidado editorial que não deixa cair na vulgaridade. A Playboy pode fazer coisas que em outra revista seriam consideradas vulgares.

Mas é a proposta, certo?

Não, acho que a Playboy conquistou esse espaço. Somos a Playboy, então nossas entrevistas são cobiçadas, temos matérias muito boas e a gente pode até, eventualmente, ser mais ousado num ensaio, coisa que as outras não podem.

Você acompanha os ensaios fotográficos?

Muito raramente, ensaio é muito chato. Tem 20 pessoas trabalhando, cuidando de figurino, maquiagem, fazendo luz e tal. Ensaio não é excitante. A relação de sedução ali é entre a modelo e o fotógrafo, não é entre a modelo e quem está assistindo, isso seria impossível. Então não é um lugar muito legal não, geralmente participo da reunião de pauta, mas não vou até lá.

Qual a capa que você mais gostou?

Acho que a melhor capa é sempre a próxima. É como mulher, a melhor mulher é sempre a próxima. Tem um ensaio que eu adoro, o da Adriane Galisteu feito na Grécia. Gosto de tudo naquele ensaio, acho ele perfeito como edição, como luz, a mulher no momento certo, é um ensaio muito bonito. Mas gosto do conjunto. Das capas, acho que a melhor é sempre a próxima.

Qual foi a mais vendida?

Foi a Joana Prado, a Feiticeira, que chegou a vender um milhão e meio nas bancas. É um número que dificilmente a gente vai alcançar, ela vai permanecer como recorde ad eternum.

Quanto tempo leva para convencer uma mulher a posar para vocês?

Varia muito, algumas negociações levam anos. Herdei negociações que já estavam andando, a gente iniciou outras, é sempre um processo de sedução. Às vezes a mulher não quer fazer naquele momento, mas pode mudar de idéia em um mês, um ano, dois anos, então a gente continua exercitando esse poder de sedução. Algumas levam anos, outras a gente fecha em um mês. 

Isso por causa do aspecto financeiro?

Também, embora a gente não pague o que dizem que a gente paga. A gente paga muito bem, mas os valores que publicam não são compatíveis com a realidade. Mas a gente paga muito bem. E acho que a maioria das mulheres posa por atitude, porque acha legal. A Playboy nunca pagou cachês astronômicos. Várias mulheres que foram capa da Playboy fizeram por cachês muito pequenos que se eu contar ninguém acredita. Pela satisfação de estar na Playboy, de saber que o ensaio vai ser bem cuidado e por uma questão de atitude: “estou na Playboy”. Tem muito isso, de vaidade e de atitude. É claro que o fator financeiro é importante, mas ele não é determinante, se fosse determinante eu já teria conseguido algumas capas que gostaria muito, que a gente até desembolsou e que as pessoas às vezes não querem. Enfim, não é o principal fator.

Quanto vocês pagaram para a bandeirinha Ana Paula?

Não posso não dizer. 

E a questão dos retoques feitos no Photoshop…

Na verdade existe uma lenda, todo mundo fala de Photoshop, até quem nunca viu um Photoshop funcionando fala com autoridade sobre ele. E existe muito pouco Photoshop na Playboy. Estou montando na minha sala quadros com fotos ampliadas sem tratamento. Tenho foto da Flavia Alessandra, da Karina Bacchi, das aeromoças, justamente para desmistificar isso, para mostrar que elas são bonitas mesmo. Para que serve o Photoshop? Para eventualmente tirar uma mancha de pele, uma espinha que não deveria estar ali, mas não se reconstrói corpo de mulher…

Acho que o Photoshop ficou famoso quando vocês publicaram o ensaio da Hortência…

Pois é, mas naquela época não existia o Photoshop. Não sei se houve retoque, nesse caso, mas muitas vezes se resolve com maquiagem e iluminação. Aliás, a maioria das vezes. O Photoshop serve para resolver pequenas imperfeições fotográficas. Existe uma lenda de que a gente reconstrói mulher, mas o fato é o seguinte: ninguém salva uma mulher feia. Não há programa que faça isso. 

E vocês convidam mulher feia?

De cara, não existe o convite, não adianta. Então existe uma lenda de alteração de foto, mas na verdade ela é muito pequena.

Por falar em mulheres que vocês não querem publicar, imagino que você seja bastante assediado…

Muito menos do que você imagina, muito menos. Na verdade, as garotas que assediam a redação, não a mim, mas a redação, são as garotas que você não quer na revista. As garotas que você quer, você assedia. Como no caso de uma relação. Geralmente a garota que quer dar para você não é a garota que você quer, você quer aquela que não quer. Como tudo na vida, funciona igual, isso aqui é um jogo de sedução. 

Das polêmicas que aconteceram, o piercing da Karina Bacchi foi o mais comentado?

Acho que foi, a única polêmica parecida foi com a Ana Paula (bandeirinha), por ser a Ana Paula. A Karina Bacchi foi uma tremenda surpresa. Quando a gente estava assinando o contrato, eu não estava na redação, fiquei monitorando a coisa pelo celular. Avisaram que a Karina iria assinar, mas que ela queria uns dias para fotografar, porque estava depilada e tal. Falei: “não precisa esperar, vamos fazer ela depilada, melhor ainda”. Daí eles falaram que tinha mais um detalhe: ela tinha um piercing. Pensei: “ganhei na loteria!”. Ótimo, excelente, foi uma surpresa para a gente, foi maravilhoso. A Karina mesmo brinca, ela tem um senso de humor incrível, ela diz que é o Kinder Ovo: você compra o Kinder Ovo e ganha uma surpresinha.

Como uma mulher se torna coelhinha da Playboy?

A história das coelhinhas começou com o Clube Playboy, uma tentativa do Hefner nos anos 60. Deu certo durante um tempo e depois acabou. O Hefner estipulou as medidas, existe um corpete que só é feito em Chicago, oficial e que tem tamanho único. Ou a coelhinha entra ou não entra. Até hoje é assim. A gente tem cinco coelhinhas aqui no Brasil que vão as nossas festas. A gente tem uma festa todo mês de lançamento da revista, geralmente no Rio. 

O que os homens devem fazer para serem convidados?

Não é difícil, assim, publicitários e anunciantes tem convites praticamente garantidos. Formadores de opinião, em geral, são convidados. Aí a gente estende para artistas, publicitários, mulheres bonitas, modelos…

Mas um leitor pode ser convidado?

A gente tem várias promoções, em toda festa levamos leitores e assinantes. Fazemos promoções através do celular. Hoje a Playboy é uma revista plataforma, ela não é só uma revista. Nossos ensaios são filmados, além de fotografados, e a gente está produzindo ensaios em vídeo, que estão disponíveis para assinantes no site, são vendidos pelo celular e depois se transformam em dvds. 

Esses dvds já estão à venda?

A gente está com um dvd que está indo para banca agora. É um produto separado, um dvd de bastidores. A idéia de fazer ensaios em vídeo é uma coisa recente, então esse primeiro tem os bastidores, entrevista com fotógrafo, produtores e com as modelos contando como foi fazer o ensaio. Para quem tem o sonho de participar de um ensaio da Playboy o dvd vai suprir isso. Vai sair um no meio e outro no fim do ano.

Presente de Natal para os homens?

Excelente. 

Vocês têm uma preocupação em relação ao humor da revista?

A Playboy sempre teve um humor sofisticado, já teve entre os colaboradores o Luiz Fernando Verissimo, o Ziraldo e agora tem o Ivan Lessa. Ter uma visão bem humorada do mundo faz parte da revista. É uma revista para homem e não foca em relacionamento, como a Vip faz, por exemplo. A Playboy não tem muito essa embocadura, é mais direcionada para o homem e homem não tem muita paciência para discutir a relação, pelo menos não o leitor da Playboy. Aqui a gente raramente faz matéria como “Entenda a sua Mulher”. A gente parte do princípio que o leitor da Playboy já entende.

*Publicada na revista TopView entre 2007 e 2009.

Entrevista com Xico Sá 2*

Ler Catecismo de Devoções, Intimidades & Pornografias (Editora do Bispo) é uma delícia. A começar pelo projeto gráfico, que faz do livro uma mini-bíblia cor-de-rosa, assinado por Pinky Wainer. E continua na prosa cantada, mas nada regional, de Xico Sá e suas pornografias. Xico faz uma ode às mulheres, cheia de ensinamentos aos homens e às mulheres, sobre coisas como o milho e a manga. Xico mescla suas experiência com as suas “imagindecências”, como conta nessa entrevista exclusiva ao Plano B.

São 389 páginas escritas por esse nordestino, nascido em Cariri em 1963 e criado em Recife, que vão deixar até os mais pervertidos, ruborizados. E não é pornografia gratuita. É um manual para não-moralistas. Desde Modos de Macho e Modinhas de Fêmea, o jornalista e escritor, se arrisca com sucesso a desvendar as relações homem X mulher. Nesse caso, em situações corriqueiras que misturam a linguagem do catecismo à dos manuais eróticos. O livro está sendo vendido pelo site da Editora do Bispo, http://www.editoradobispo.com.br. Você pode também encontrar informações sobre o autor no blog http://carapuceiro.zip.net. Segue a entrevista.

Você disse, em outra entrevista que fiz com você em 2003, que a intimidade era a grande pornografia. Continua pensando assim?
É a maior e mais bela pornografia. Sempre será. O grande gozo só é possível com a grande intimidade.

Como nasceu a idéia desse livro?
Tive a idéia ao reler um velho manual árabe de sexo, O Jardim Perfumado, sabedoria muito antiga. Aí deu vontade de fazer algo parecido para os dias de hoje e com os costumes de hoje. Tem um pouco de inspiração também nos catecismos do Carlos Zéfiro, com os quais me iniciei na arte da masturbação.

Existe algum outro simbolismo, além da sua declaração: ‘uma resposta ao catecismo do papa Bento XVI, que condena a pornografia e a luxúria’?
Toda essa cruzada moralista da igreja também serviu de incentivo para fazer o livro. O formato tem como modelo os catecismos católicos dos anos 20 do século passado. A Pinky Wainer, autora do projeto, fez uma puta pesquisa para desenvolvê-lo. É uma bíblia de sacanagem para maiores de 21 anos.

Você é religioso, Xico?
Fui até coroinha de igreja no Nordeste, mas graças a Deus me livrei do ataque de algum padre pedófilo. Hoje sou descrente, pois acho que Deus prefere os ateus.

O Catecismo… traz referências a escritores contemporâneos, como Joca Terron ou Ronaldo Bressane, que você chama de bispo auxiliar. Você teve essa preocupação de trazer esses nomes para o seu trabalho ou isso é algo natural?
Além de grandes escritores, são amigos com os quais convivo. Trocamos muitas idéias a respeito dos livros uns dos outros. Cada cerveja é uma história. Terron e Bressane são importantíssimos na minha transição do jornalismo para um texto mais literário.

Até que ponto as conversas com seus amigos nos bares são a sua inspiração?
Quando os amigos estão bêbados, roubou-lhes as melhores idéias para escrever. Brincadeira. Mas sempre ameaço e, às vezes, os assuntos viram mesmo boas crônicas. Mas tenho o cuidado de citá-los, homenageá-los.

Qual o papel dos blogs para a disseminação do trabalho desses escritores?
Tenho me aproximado cada vez mais, até por conta da amizade com os escritores da chamada geração 90, de todo esse movimento da nova safra. Além do Terron e do Bressane, um nome importantíssimo que serviu de ponte para a minha aproximação foi o Marcelino Freire, que, junto com o Nelson Oliveira, é o grande agitador. O blog tem sido o principal veículo desse povo todo. Além de divulgar a produção e os eventos, tem servido também como incubadora de novos livros. Os escritores vão guardando e testando ali o que depois é editado na forma tradicional do livro.

Você disse que o livro é um tratado de devoção às mulheres. Qual tem sido a reação das mulheres ao livro?
Mais de 80% dos compradores dos meus livros são mulheres, exatamente por conta dessa sincera devoção. Me ajoelho aos seus pés.

E qual a reação dos homens?
Os homens ficam mais chocados do que as mulheres, pois trato de temas ainda tabus pra eles, como o fio-terra, por exemplo.

O que é pornográfico para você?
É a intimidade radicalizada.

Sexo melhora com a idade?
Cada fase tem uma linguagem diferente. Mas nós, homens, realmente não sabemos nem dizer bom dia a uma mulher até os 20 e tantos anos. Aos 30 estamos bem melhor e aos 40 atingimos a melhor fase.

Acho que os títulos dos capítulos são uma literatura à parte. Isso é fruto de um trabalho solitário?
Tão solitário quanto a masturbação. Haja noites e madrugadas, com muito vinho, para tecê-los.

Você tem uma musa inspiradora?
No caso do Catecismo são várias musas. Muitas situações ocorridas de verdade.

A Pinky Wainer, autora do projeto gráfico do livro, é sua sócia na Editora do Bispo. Qual é a proposta da editora?
Queremos fazer uma editora menos careta possível, que publique preferencialmente textos que seriam rejeitados nas grandes editoras. E a linha será sempre essa: sexo e religião.

O “Modos de Macho” saiu pela Editora Record. Você preferiu abrir mão de uma grande editora?
Não tive problemas com a Record de liberdade de expressão. Não houve vetos. Fiz o “Modos de Macho…” da forma que bem entendi. Mas numa editora pequena como a nossa, poderemos radicalizar nos formatos dos livros, na apresentação, como é o caso do Catecismo.

O livro é copyfree. Por que vocês resolveram publicar assim?
Achamos um absurdo que existam acumuladores de direitos alheios, exploradores do já miseráveis escritores. Além do mais, é ridículo que no mundo de hoje as idéias e os conteúdos não possam circular livremente. Incentivamos que nossos livros sejam copiados e reproduzidos livremente.

*Originalmente publicada no site O Plano B, entre 2005 e 2006.

Entrevista com Xico Sá 1*

Sabe tudo de macho

Xico Sá é um pernambucano arretado que depois de muito escutar sobre os problemas de relacionamento de suas amigas e amigos resolveu compilar as crônicas da coluna Macho – revista da Folha – no livro Modos de Macho e Modinhas de Fêmea – A Educação Sentimental do Homem.

Acompanhando a enxurrada de livros para Balzacas – mulheres que passaram dos trinta, são bem resolvidas profissionalmente e ganham salários de deixar muito homem de olhos arregalados, mas vivem conflitos esporádicos de relacionamentos –, eis que é lançado um exemplar do gênero masculino. Tirando algumas piadinhas mais desagradáveis para nós, mulheres, o livro provavelmente arranca risadas de todas as inclinações sexuais. Se bem que talvez os homossexuais masculinos se sintam um pouco magoados quando o autor diz que açúcar é coisa de mulher, gay e formigas. Polêmicas a parte, trata-se de um manual-crônicas que todo homem deveria ler para se tornar o lenhador sensível, do qual Xico tanto fala. Cheio de referências – ele cita Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Paul Virilo e Mark Twain, só para comentar alguns –, e com várias expressões regionais, o livro foi definido pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos como ‘livro com humor de primeira pra macho nenhum botar defeito e inteligência suficiente para fêmeas caírem de boca’. Xico muitas vezes se esconde atrás de um personagem chamado Sr. Pereira, uma espécie de alter ego que fica como autor das considerações mais pesadas.

Modos de Macho e Modinhas e Fêmea é a primeira experiência literária do jornalista, conhecido pelos furos de reportagens que publicou nos principais jornais e revistas brasileiros. Na época em que a história do Collor e do PC Farias estava no ápice, era Xico quem andava na cola dos dois e foi ele quem soube, em primeira mão, que PC estava escondido em Londres. Foi ele também o repórter por trás da revelação das empresas que doavam dinheiro para Collor. Xico também cobriu a chacina de Eldorado de Carajás e descobriu o primeiro travesti eleito no país, no sertão do Piauí. Afastado da loucura que é o jornalismo investigativo, ele dá voz a sua veia literária. Escreve atualmente para as revistas Playboy, Trip, TPM e Primeira Leitura, além de ser crítico de televisão do jornal Folha de S. Paulo. Xico é daqueles que escreve sobre futebol e Fernanda Lima com o mesmo interesse, com as mesmas sacacas, sempre acompanhadas de uma dose nada homeopática de ironia. No momento usa seu humor nato para falar de televisão e se refere ao excesso de programas de culinária assim: “A TV agora representa para os miseráveis o que as velhas máquinas de assar frangos sempre significaram para os cachorros: uma bela miragem de comida”. Nesta entrevista à Top Magazine, ele fala sobre o lançamento do livro, mulheres, homens, relacionamentos, televisão, política e sobre os dois livros que está fazendo: Boyzinha, que deve ser lançado em março de 2004, e um livro sobre as formação das celebridades no Brasil, ainda sem título, que deve ser lançado em outubro deste ano.

Em Modos de Machos e Modinhas de Fêmeas você dá a receita do homem que deixaria a mulher apaixonada depois do primeiro encontro. Você fez uma pesquisa de campo para chegar a essas conclusões?

Sou muito conselheiro e cupido das minhas amigas e sempre andei colado nesse universo. Aí você acaba assimilando, discutindo esse assunto e sou muito convocado para esses aconselhamentos e tal. E é um assunto que me interessa bastante, levando em consideração que conheço mais a parte dos homens. O que os homens dizem mais desavergonhadamente, o que dizem enquanto estamos só entre nós. Então nesse leva e traz de um lado para o outro, acabo assimilando muita coisa. Anoto algumas observações, algumas frases e depois desenvolvo uma crônica. Acho que foi por aí. Se tiver alguma coisa de ensinamento foi totalmente assimilada dessas conversas. Não é científico, mas também não é 100% chute. Sempre tem uma visão de campo sobre o assunto.

Você diz que toda mulher quer um homem sensível e lenhador ao mesmo tempo.

Isso foi mais colhido entre as mulheres, uma coisa recente. Eu tava conversando com uma amiga e ela tava meio afim de um cara. Ela começou achando ele meio grosso demais, tosco, bruto, assim e tal. Depois o cara ficou apaixonado também e começou a ser muito doce e muitas flores. E ela falava: ‘porra, o cara agora tá muito aveadado, delicado, quero um homem mais macho’. Quer dizer, ela ficava com críticas pesadas aos dois lados do cara. Foi quando eu disse: então tem que ser um modelo lenhador sensível. E eles acabaram se dando bem para caralho e tal.

Como é o teu relacionamento com as mulheres?

Tenho todas as falhas e as mentiras de varejo que os homens têm. Não sou nem um segundo mais qualificado do que os outros, mas acho que procuro ser menos mentiroso possível, ser menos machão possível. Venho me reformando a cada relacionamento, tanto que acho que estou hoje infinitamente melhor do que no meu namoro anterior. Acho que os homens deveriam ceder e começar a se interessar mais pelas DRs – Discussões de Relacionamento. Porque a gente foge da DR, a gente morre de medo dela. Mas se você começa a ser mais incisivo nas DRs, contesta e briga mesmo, também diminui o tom das mulheres em relação a você. Acaba sendo mais ouvido, não fica naquela coisa da gente de dizer ‘ah não, que saco, não vou discutir’. E nisso acaba imperando o modelo feminino porque a gente acha que manda, e acaba não discutindo, não quebrando o pau nas horas que deveria quebrar. E seria interessante para as mulheres puxarem os homens para essas discussões sem falar a expressão ´discutir a relação`. Começa a quebrar o pau sem dizer nada. Porque quando a mulher diz ‘precisamos conversar’, quando tem aquele tom, começa a fuga desesperada nossa. Acho que se deve começar a quebrar o pau assim sem prefácio, sem aviso prévio. Pega o cara no meio de uma mesa redonda de futebol e já começa ali. Porque nesse momento a gente começa a pensar assim: ‘caralho, o que ela soube? Fodeu, o que aconteceu?’.

Dizem que você descobriu a tragédia sentimental aos 15, 16 anos, quando participava do programa de rádio Temas do Amor, junto ao locutor Gevan Siqueira.

Eu escrevia o roteiro, digamos assim. Era um programa de aconselhamento sentimental, em uma rádio de Juazeiro do Norte, cidade na qual morei na adolescência. E nesse programa as pessoas que estavam passando por terríveis dores amorosas, como fim de namoro, fim de casamento, mal estar, estava afim de uma pessoa e era rejeitado, enfim, normalmente eram coisas muito trágicas, escreviam pedindo um conselho. A gente aconselhava e colocava uma música, normalmente essas músicas bem bregas, associada à carta da pessoa.

Mas você fazia isso com 15, 16 anos?

Era com 15 na verdade.

E já estava dando conselhos sobre problemas amorosos?

Na verdade eu era péssimo, acabava dando um conforto meio cristão. Não era que eu fosse bom e que entendesse do assunto. Eram aquelas palavras meio Olavo Bilac, era como se eu fosse um ombro para chorar. O Gevan Siqueira já tinha uns 30 anos e uma vivência amorosa. Então ele pegava os meus textos e dizia: ‘porra, assim a mulher vai morrer de chorar mais ainda. Vamos aconselhar isso e tal’. Junto com ele eu acabava tendo uma visão mais experiente.

De um tempo para cá existe uma enxurrada de livros, a exemplo d’ O Diário de Bridget Jones, o Guia da Mulher Superior do Dois Neurônios, o Amor, Curiosidade, Prozac e Dúvidas. Você acha que está inaugurando um estilo voltado para o gênero masculino?

Acho que a novidade foi quando comecei, em 1997, a coluna Macho, na Revista da Folha. Não foi nem idéia propriamente minha, foi da Susana Singer que era editora da revista. Tinha coluna GLS, uma coluna de mulheres e, até por conta dela me ver muito em mesa de bar com esses aconselhamentos ou discutindo esse tema, ela me chamou para escrever sobre isso. Então naquele momento acho que a gente estava abrindo essa discussão pelo lado dos homens.

O senhor Pereira é o seu alter ego?

O Senhor Pereira é um pouco meu alter ego e um pouco qualquer amigo meu que diga uma coisa interessante que não quer assumir. Ponho nele coisas que penso e que, às vezes, não tenho coragem de dizer que sou eu que penso, para não dar uma impressão tão pesada. Quando sou eu que penso, funciona meio como uma contradição entre o homem e o macho que eu quero ser, o cara mais sensível, mais tranqüilo, menos machão e o velho homem, o velho macho, da cultura latina, brasileira e nordestina, que ainda convive comigo. Quando é frase minha mesmo funciona nesse combate, nessa guerra interna. Começou porque tem um amigo meu aqui de São Paulo, que é um cara às vezes bem machão. Depois o Pereira foi crescendo e estendi até a mim mesmo. É uma voz, é um coro grego que sempre aparece nas discussões.

Você acha que estamos em uma época de mudança, já que a mídia está abordando muito o assunto de uma suposta falta de homem?

Acho que existiu um abandono de uma coisa que considero a mais importante: a intimidade. Por conta dos resquícios dos anos 70, de uma liberdade sexual e até quando a AIDS virou uma coisa de pânico, houve o abandono de intimidade de grandes relacionamentos. Tinha uma coisa boa que era assim ‘não vamos ser conservadores, se a relação acabar acabou, se tiver que ficar com alguém fica’. Isso era legal porque quebrava uma tradição. Mas junto vinha um abandono da intimidade, que acho uma grande sacanagem. A grande pornografia ainda é a intimidade, é você passar muito tempo com uma pessoa. Não é que não possa ser bom um encontro fortuito, mas normalmente é superficial e, em termos de sexo, um desastre. Uma transa ocasional não é a grande história. Você não usufrui, é quase que não é para ser sexo, é uma brincadeira meio esquisita, com uma pessoa que você não bate bem, e sabe que tem um erro ali tremendo. Um jogo de sete erros do sexo. E com a intimidade você alcança a grande história. E claro que com isso vem também a porrada, as brigas, os conflitos, mas sempre vale mais a pena.

A crônica Manual do Lenhador Sensível fala sobre a dificuldade que os homens têm em entender o silêncio feminino. É tão difícil assim?

Fico tentando entender a partir dos meus defeitos. Fico pensando na trajetória daquela semana, no que fiz, qual foi a maior merda, não sei o quê. Durante isso, se for em período de TPM também tem aquela clássica desculpa, que facilita em muito a nossa vida. A gente diz ‘ah, é TPM, não vou ligar’. Quando não é tão simples assim. E uma terceira coisa, que às vezes penso, é uma coisa que Antônio Maria escreveu: ‘mulher nenhuma agüenta dez dias seguidos de felicidade’. É aquela coisa, está tudo mil maravilhas, sensacional encontro, coração batendo, nervosismo na hora de ver o outro. E, de repente, a mulher está ali no café da manhã parecendo meio triste. Nesse momento penso na frase de Antonio Maria. Dez dias é demais para elas.

Você sempre menciona que os textos têm que contar histórias que deixem o leitor com água na boca. Você sempre fez essa mistura de literatura e jornalismo?

Normalmente os jornais são muito caretas nesse sentido e o que eles puderem fazer para não deixar passar um texto mais livre, eles fazem. Mas quando me afirmei profissionalmente, e acabei sendo mais respeitado, tive a chance de fazer esse tipo de coisa. No início da carreira eu tentava, mas não conseguia porque tem aquela velha história da burrice da objetividade total. Você é superobjetivo, mas não chama o leitor para ler seu texto. Gosto de passar uma certa afetividade, chamar o leitor para contar uma história, ‘pô, senta aqui, vamos conversar’. Mas nesse mundo chato do jornalismo normalmente você não consegue. Comecei a conseguir isso há pouco tempo.

Já que você é crítico de televisão, o que você achou da atuação da Globo nas eleição de 2002?

Acho que a Globo se adaptou totalmente. Tem uma crise gigante na parte de tv a cabo e internet, eles estão enfiados até o pescoço em dívidas. E começaram a reivindicar um empréstimo ao BNDES desde antes das eleições. E acho que havia o temor de uma possível recusa a esse empréstimo no caso de Lula ser eleito. Mas isso não é 100%. Também havia um esforço por conta dos profissionais que estão lá, até o próprio comportamento do Wiliam Bonner demonstrou isso. Havia um esforço em fazer um jornalismo diferenciado do que a Globo fez nas eleições anteriores.

Tanto que até entrou um apresentador negro no Jornal Nacional…

Exatamente, foram várias coisas. Acho que é mais esforço e ética dos profissionais que estão lá do que da direção. A direção cedeu pelo temor financeiro, mas são os jornalistas que mudam um veículo, mais do que os próprios donos.

Você já cobriu guerra?

Só guerra brasileira, guerra civil, morro do Rio, Chacina de Eldorado de Carajás, muita coisa desse Brasil em conflito. Fiz muita matéria no Bico do Papagaio, que é a região onde começaram os conflitos agrários no Brasil.

E você acha que o presidente Lula vai resolver alguns dos problemas sociais?

Acredito que vá melhorar, mas não acredito que exista esse milagre de resolver todas essas mazelas. Existem indicativos bons de que vai mexer em muita coisa. Não que no fim do governo esteja um paraíso, mas acho que vai avançar em muitas discussões. A criação, por exemplo, da secretaria que vai cuidar especificamente do racismo, é um grande avanço. Na parte executiva pode ser bastante atrapalhado como está sendo o Fome Zero, por conta da novidade, do tamanho que isso alcançou, esse negócio de Vera Loyola, Gisele Bündchen, a Igreja e todos os segmentos. O governo não estava preparado pro tamanho do impacto desse tipo de coisa. Mas vai ser um governo que no fim vai ter um pocado de avanço para apresentar. O excluído dos excluídos acho que pode ter uma certa decepção, porque ele via uma salvação total no Lula. Mas se ele fizer a reforma da Previdência e a Tributária, já vai ser um avanço sem tamanho. Se matar um pouco dessa fome, essa coisa de nego morrer de fome, que é uma coisa totalmente Idade Média, também já é um grande avanço. A expectativa é gigantesca. Com o Fernando Henrique não tinha essa coisa sentimental que está tendo com o Lula.

E sobre a Guerra que o Bush inventou. O Carlos Heitor Cony disse que as armas do Saddam são espingardas de rolha perto do poder dos Estados Unidos. Como você analisa essa guerra?

Parece um vídeo game. A Danuza Leão escreveu, em uma coluna da Folha, que diante do desespero de não saber o que fazer, e não ter mais idade para ir para frente da embaixada americana, vai parar de beber coca-cola. Ela é viciada em coca-cola, mas vai parar. Temo que essa situação cause uma certa falta de esperança nas pessoas que costumam se mobilizar. Porque fizeram de tudo, foram para as ruas e o cara vai, passa por cima da ONU, passa por cima de todas as instâncias e faz a guerra do mesmo jeito. Faz a Guerra não, faz a chacina dele do mesmo jeito. O que tento fazer de um tempo para cá é esse boicote econômico. Acho que a grande história que começou a funcionar a Europa que é boicotar durante a Guerra produtos americanos. Sei lá, a Esso, os grande conglomerados de carros, de não sei o que. Na Europa isso está surtindo um puta efeito.

E depois da guerra os Estados Unidos vai se abalar profundamente, na minha opinião, como primeira potência mundial.

Vai e eu acho que na América Latina vai voltar muito o espírito antiamericano que já existiu e que estava tranqüilo. É um pouco suicida para os Estados Unidos essa parte simbólica de domínio. Porque é a nação que dominou toda a era da globalização, tudo foi com a cara americana. E acho que com essa guerra isso pode inverter totalmente. A Europa pode retomar a hegemonia nas artes e na cultura. Seria um prejuízo simbólico grande e seria muito bom se isso acontecesse. Embora alguns chefes de estado tenham interesses comerciais, o povo está voltado para as manifestações, com esse cheiro de humanismo que a Europa sempre teve.

Você continua atuando como repórter?

Eu tô num recesso rápido, por conta desse lado mais literário. Sempre vivi um conflito interno grande porque no começo eu fazia muito essa coisa mais literária, participava de movimentos literários, mexia com música também. E por conta desse jornalismo mais sério, de furos, acabei sendo obrigado a largar isso. Você começa a entrar em uma investigação e vira uma paranóia tão louca que você passa 24 horas alucinado com aquilo. E começar a escrever sobre esse mundo do livro, do macho, foi uma boa história para eu retomar essa veia mais literária. E estou escrevendo outro livro agora.

Sobre o que?

Um romance. É meio que uma Lolita versão nordestina. Chama Boyzinha, expressão que é muito usada na periferia do Recife. ‘Ah, vou sair com a minha boyzinha’. É um apelido carinhoso da namorada.

Então agora você só está envolvido com seus projetos literários…

Claro que ganho a minha vida escrevendo para essas revistas e tal, é o que me sustenta. Estou fazendo também um livro de encomenda para a editora Objetiva. É um guia sobre a indústria de celebridades no Brasil. É bacana, um livro bem jornalístico, claro que vou botar muita ironia, mas é um livro de encomenda. Fiz uma pesquisa desde a revista o Cruzeiro até os Big Brothers de hoje. Então vou dar esse tempo. Mas me faz falta um pouco essa rotina de redação e eu não quero abandonar.

Você é muito ligado a televisão. Você já foi repórter?

É que eu já fiz muita coisa, mas sempre fui um fracasso fazendo TV. Repórter não dá, com a minha cara não dá. No Recife eu escrevia para alguns programas de entretenimento. Fiz com o Cazé Peçanha o Sociedade Anônima, mas eles me sacanearam lá dentro da Globo. Foi minando, abandonaram o cara, aquela coisa para queimar e pular fora, que a Globo faz muito. Pelo menos aprendi como funciona a porra de uma grande estrutura como aquela. No caso como funciona o lado do mau, mas deu para ver. Depois fiz, com o próprio Cazé, o Tome Conta do Brasil, na MTV. Nesse caso fui superbem recebido, foi bacana. É muito legal fazer televisão no Brasil em TV pequena, onde a ditadura da audiência não é fundamental. Na MTV ou Bandeirantes uma hora da manhã. O Cazé não deu certo porque não dá para concorrer com o Sílvio Santos e o Show do Milhão. Nem a minha mãe assistia.

O que você achou da crítica que a Fernanda Young fez ao seu livro na Folha de S. Paulo?

Ela esculhambou, imagina uma mulher que chama Young falar de Xico com X. (Fernanda Young avaliou o livro como péssimo e disse que o leitor “compreenderá, talvez, como homens de razoável inteligência foram capazes de passar suas vidas adultas reproduzindo tolices sem que isso implicasse em algum constrangimento social. Tolices como medir seu amor pelo tamanho do pênis ou assinar Xico com ‘xis’ para ficar diferente”) Ela falou sem piedade, essa história do pênis não tem uma crônica do livro que fale do tamanho do pênis. Quando você é jornalista está sendo sempre julgado no dia-a-daia e isso não me incomoda. O que incomodou foi a forma como ela colocou lá, comparando a Hitler, ela entrou num lado tão louco, tão absurdo… Ironizou as mesas cultas e Pernambuco, ironizou o fato de eu ser de Pernambuco. Mas tudo foi por conta de uma crítica que fiz ao programa Saia Justa. Ela se sentiu magoadíssima.

O que você acha do Saia Justa?

Não suporto. Acho que tem algumas coisas legais como a Rita Lee, respeito ela ao máximo. Mas é muito metimento, não acho bacana. A Fernanda Young fala de disco voador e depois diz: ‘gente, não sou fútil, gosto de Schopenhauer’. Sabe? É uma loucura aquilo. Mas quem gosta, gosta. Quem não gosta, não gosta. Eu não gosto. Gosto da ironia da Rita Lee, às vezes da burrice da Marisa Orth, ou da outra certinha. Quando a gente fala mal e não gosta é porque o programa deve pegar a gente para ficar vendo de alguma forma. Até mesmo por causa da Fernanda Young.

E como foi a repercussão do Modos de Macho e Modinhas de Fêmeas?

O livro vendeu muito bem para um autor quase iniciante. Tá rolando muita discussão em muitos lugares e notei que é uma discussão que todo mundo adora. Tem umas leituras engraçadas, tem gente que acha que é auto-ajuda. No começo eu ficava meio incomodado com isso, mas depois compreendi que estou levantando essa discussão e tenho que responder. Fui numa rádio do Nordeste, que era aberta ao ouvinte, aí vinham perguntas do tipo: ‘como é que faço para conquistá-la no primeiro encontro’. Perguntas bem técnicas e objetivas. No começo eu ficava naquela de ‘olha, não escrevi auto-ajuda, nem psicologia, nem nada científico’. Agora, dane-se, vou responder, gostar de entrar nesse mundo mesmo e pronto. A forma como escrevo é outra história. E é muito metimento da gente querer fazer uma coisa mais ou menos nobre. Depois que você escreveu uma coisa ela não é mais sua, tá nas mãos das pessoas.

*Publicada originalmente na revista Top Magazine entre 2000 e 2004.

Entrevista com Irmãos Campana 1*

Entre a arte e o design

O design no Brasil ainda é uma atividade recente. Somente em 1964 é que foi aberta a primeira faculdade do setor, no Rio de Janeiro. A vertente que mais se destaca é o design de mobiliários, que engloba todos os objetos utilizados dentro de um espaço construído, como móveis, luminárias, tecidos e acessórios. Nos anos 80 ganhou força com a criação do Núcleo de Desenho Industrial em São Paulo. A partir disso, o design floresceu. Hoje o estilo brasileiro, apesar de jovem se comparado a outros países, demonstra criatividade e vitalidade, além da maturidade comprovada pela conquista do mercado internacional, onde se destacam muitos nomes, entre eles Humberto e Fernando Campana.

Nascidos no interior de São Paulo, os irmãos Campana conquistaram lugar no concorrido mundo que alia estética à funcionalidade. Isso com muito trabalho e a dose certa de talento. Eles unem a técnica, intuição e funcionalidade ao bom gosto e despojamento para fazer de seus trabalhos algo inconfundível. A marca está nos detalhes, seja uma vaso, uma luminária ou um porta retratos.

Vindos de uma família de classe média, filhos de um engenheiro agrônomo, os irmãos são marcados pela ansiedade e inquietação. A família sempre fazia muitas viagens, encorajando a ânsia por conhecer novos lugares, realidades e culturas diferentes. Isso fez com que conhecessem o interior e as capitais do Brasil desde muito cedo. “Naquela época eram umas quatro, cinco horas até São Paulo capital. Era uma aventura porque encalhava o carro, a gente passava por dentro do cerrado, via lobo-guará, ema, madeira…”, diz Humberto. Isso desenvolveu a observação, que tem extrema importância no trabalho atual. Muito do que eles fazem hoje se deve ao contato estreito com a calmaria da cidade natal, a terra e a natureza. O anseio de quem via um mundo ampliado na cidade e voltava pra vida do interior. Eles começaram no mundo das artes fazendo pequenas mudanças na casa da avó, construindo cabanas em árvores, foguetes, aviões… coisas de criança. Nessa época, o Brasil vivia os resquícios da ditadura militar, que limitava as opções e escolhas profissionais, principalmente ligadas as artes. Humberto acabou optando pelo direito; Fernando – que sonhava ser ator – foi fazer arquitetura. Mas não adiantou. A inquietação os levou a se unir, agora profissionalmente, para desenvolver o trabalho que mais apreciam: a arte de criar.

A competência e desenvoltura da dupla os levou ao MoMA, em Nova Iorque. A revista Wall Paper, uma das mais respeitadas neste segmento, dedicou a eles duas páginas e não poupou elogios. Eles estão sempre procurando, pesquisando e criando novas formas de explorar materiais comuns que, além de belos, tragam conforto e prazer. Eles cederam uma entrevista exclusiva à Top Magazine, na qual contaram um pouco de suas histórias, mudanças profissionais, anseios e realizações.

Como foi a transição da advocacia para o design, Humberto?

Humberto – Eu gostava muito de literatura. Tinha a faculdade de direito da USP e ela foi um celeiro de escritores. Tinha Lygia Fagundes Telles, Fagundes Varella, e eu sempre lia muito quando adolescente. Acho que foi por ingenuidade. O Brasil, naquela época, anos 70, vivia a ditadura. Primos meus foram mortos, então criou-se um trauma, “ah se você for fazer artes, vai ter problemas com a polícia.” Pensei que a única coisa a fazer era  direito. Foi super chato porque não me enquadrei em nada disso. E o que aconteceu depois, foi uma mudança radical. Fui pra Bahia, para uma cidade que é o fim do mundo. Horrível, feia. Mas aquilo me deu disciplina, entrei em contato com várias coisas. Sabe uma fênix, quando você renasce?

Fernando, você  também viveu o peso da ditadura?

Fernando – Sou mais jovem, mas senti o reflexo disso, porque fui educado sobre a ditadura. Na escola não se podia falar as coisas. Mas é curioso, porque eu estava lá, mas conseguia ver outros mundos. Escolhi arquitetura, mas acho que era também um reflexo, porque queria ser ator. Mas ser ator naquela época era complicado. Sou neto disso, a minha geração era completamente conformada com tudo aquilo. Fiz arquitetura e isso abriu um leque pra vários campos, como para as artes plásticas. Não era o que eu queria, principalmente quando falavam que o funcionalismo era a única coisa que podia ser lançada, que Bauhaus era tudo e não se mostrava outras correntes de linguagens. No final da escola surgiu o pós-modernismo. Eu comprava livros e revistas internacionais e levava pra as pessoas verem que existia uma crítica danada a isso. Por que não pode existir outra forma de linguagem? Acho que isso me levou a fazer um trabalho mais ousado. Foi quando me encontrei com o Humberto e a gente começou a trabalhar.

E como aconteceu esse encontro?

Humberto – Casual. Naquela época eu já morava em São Paulo. Mas queria ser escultor. Isso foi em 81, mas efetivamente a gente iniciou o trabalho em parceria em 84. Começamos a pesquisar materiais, trabalhávamos com mármore e granilite. Eram apenas objetos pequenos, tínhamos medo de fazer uma coisa maior, em escala grande. Até que um dia resolvemos colocar a mão na massa e fazer coisas grandes.

Fernando –Nessa relação o apoio de duas pessoas, a curadora Marilene Estrada e a Adriana Adam, foi fundamental. As duas nos empurraram, jogaram lenha na fogueira. Disseram que o trabalho era bacana, novo, com frescor e não era contaminado pela estética de Milão. Então, fizemos uma super exposição. Em um mês a gente fez mais de 40 peças, porque sentimos que este era o caminho certo. A gente não tem uma indústria por trás, pra fazer tudo. Então começamos a questionar. A gente pode fazer ao contrário das coisas perfeitas. Provocar mesmo, sabe?

Para vocês, qual é o limite entre o feio e o belo?

Humberto – É engraçado, porque São Paulo é muito feio. Mas trabalho lá, vivo lá, tenho que achar aquilo bonito. Então começo a achar o lixo na rua, o grafite no muro, bonito. A avenida 23 de Maio, que vai para o aeroporto, é tomada de cartazes de políticos, pequenos e grandes. Imagine, as pessoas que vão governar essa cidade fazem a sujeira, mas tenho que achar isso bonito. E comecei a ver aquilo como um quadro cubista. Acho que o feio pode ser bonito, depende da liberdade que você dá pra sua mente, pra aquilo não te aprisionar, não te deixar triste.

Fernando –Você pode achar uma tragédia, mas aquela foto do Concorde pegando fogo é lindo, apesar de ser trágico, triste. Mas é de uma beleza que eu nunca vi.

Muitas vezes a pobreza serve, para vocês, como fonte de inspiração, tanto que vocês fizeram a Cadeira Favela. Como funciona isso?

Fernando – Santa Cecília (bairro onde é o estúdio dos Campana) é um bairro decadente dos anos 40. É periférico, tem pobreza, mas não é uma decadência violenta. E a nossa função é revisitar o mundo mobiliário, das coisas que existem ao nosso lado, e transformar.

Humberto –A gente vê aqueles carrinhos das pessoas que catam papel, que é usado para carregar papelão durante o dia e, à noite, se transforma em uma casa. Se algum arquiteto prestar atenção na construção disso e transformar, soluciona alguns problemas de habitação.

A preocupação com a questão ambiental também fica evidente no trabalho de vocês…

Fernando – Acho que qualquer cidadão esclarecido, que olhe um monte de lixo acumulado, tem que pensar logicamente. A partir da observação a gente começou a tratar isso de uma outra forma. Para mim, cortar árvore é a mesma coisa que alguém chegar e cerrar teu pé, com uma serra elétrica. Sinto isso e não corto uma árvore jamais.

Humberto – Também é a necessidade de trabalhar com materiais não tão custosos que propiciem a execução. É a mágica do nosso trabalho: transformar uma coisa muito pobre em algo sofisticado.

Fernando –Quanto mais excesso tem, mais você esconde a capacidade de criação. A criatividade de muitos arquitetos e designers está escondida no excesso de aparatos e de coisas que não dizem nada.

Isso justifica a importância da forma, antes da funcionalidade?

Fernando– Isso justifica todo um conjunto do trabalho. Digamos que uma forma muito pura consiga ter uma função adequada ao que ela foi projetada. Assim se consegue um preço legal. A nossa busca é trazer cada vez mais a forma para o universo da função. No sofá de papelão, por exemplo, você tem que saber que está sentando sobre uma superfície de madeira. É a mesma coisa que sentar em um banco de madeira, mas com uma inclinação adequada. Muita gente confunde isso. Olha e acha desconfortável. Mas é porque não é estofada. Se colocar em paralelo com os móveis feitos com o mesmo material ela é melhor. No sofá de papelão a primeira imagem, você acha que vai se jogar e ver TV a tarde inteira, mas não é. É um banco. O papelão, quando é tratado, colado, grudado, adquire uma rigidez que quase volta ao estado de madeira.

Como é o trabalho de experimentação dos objetos?

Fernando – A gente sempre faz um rabisco em um guardanapo, por exemplo. A Cadeira Cone, a gente tava estudando isso (pega um guardanapo e faz a forma da cadeira cone). É muito experimentação, pequenos materiais, arames, um desenho…

Humberto – Gosto de ficar criando. É minha obsessão, uma inquietação muito grande. Preciso estar com alguma coisa dentro da cabeça. Agora estou trabalhando com papelão e tentando criar um volume com aquilo.

Existe fronteira entre o design e as artes plásticas?

Fernando –Alguém falou isso, não sei se foi o Sílvio Meirelles, mas tudo é organização de coisas no espaço. Se você joga tinta na tela, tá organizando aquele espaço, ou desorganizando. Cada um trata da sua forma. Lógico, existe a nomenclatura, artes plásticas e design. Um tem que cumprir uma determinada regra de existência no espaço físico, que é a função. O outro pode não cumprir em nada. Mas acho que tudo é trabalhar com a coisas no espaço. Seja tinta, escultura, gravura, cadeira ou instalação. É tentar organizar e ser testemunho de uma época.

Humberto –É a função do artista. Antecipar através de um gesto.

Vocês participaram de uma conferência em Aspen (EUA) e falaram sobre “O Espírito do Design”. O que significa isso?

Humberto – Percebemos que o espírito do design é a paixão que você tem e falamos em como extrair beleza do caos.

Fernando – Vários profissionais do mundo inteiro – cientistas, físicos, matemáticos, líderes budistas – falaram sobre como as pessoas viam as coisas a sua volta. Nós enfocamos as formas. Como é a economia informal brasileira ou como alguém recicla o lixo, por exemplo. Como, dentro do nosso universo, transformamos o caos em beleza.

Qual o impacto que isso causou nas pessoas que assistiram?

Fernando – Foi chocante.

Humberto– Ficamos emocionados. É até chato falar. Cheguei muito nervoso. Meu inglês não é perfeito, mas na hora fluiu.

Fernando –  Não era uma apologia a pobreza. Não foi tirar partido da pobreza para mostrar uma coisa bela, porque isso virou até estética. Era mostrar o que a gente vê, o que a gente vive.

Humberto – O brasileiro tem modernidade. A Europa, acho que já morreu. Vou lá, acho legal, mas vejo um monte de almas mortas. Os sentimentos não existem. É tudo muito nublado, muito frio. Essa generosidade de sentimentos dos brasileiros é o que o mundo precisa. Não vejo isso nos Estados Unidos, na Itália ou na França. Eles riem um pouco desse excesso de afeição que a gente tem. Mas eu não queria viver nesse mundo frio, de economia de sentimentos, onde as pessoas ficam se guardando só pra dizer que é chique.

Vocês foram reconhecidos antes fora do Brasil?

Fernando – Aumentou o conhecimento aqui dentro quando a gente foi reconhecido lá fora. Aumentou o respeito, a crença quando fizemos a exposição no MoMA e tivemos um produto industrializado na Itália. Mas aqui sempre rolou um interesse por parte da imprensa.

Como é ser designer no Brasil?

Fernando – Se a gente vivesse em um país tecnológico seria mais fácil. Se eu fosse americano acho que a vida não seria assim. Mas aqui a gente tenta buscar o paralelo.

Humberto – A gente sente que lá fora existe uma curiosidade muito grande sobre o que tá acontecendo aqui. Temos riqueza de formas, basta olhar as pessoas na rua.

Fernando – Se todo mundo fosse rico seria melhor. Todo mundo tem que ter conforto, vamos dar Mercedes e Audi pra todo mundo. Sempre falei isso na escola. Eu odiava aquela coisa comunista de que tudo tem que ser pobre. Vamos dividir a riqueza e o prazer.

Tem muita gente seguindo a trilha de vocês?

Fernando – Não sei se estão seguindo a trilha, mas sei que abrimos o campo pra um monte de gente se encorajar. Essa responsabilidade acho que a gente tem. É uma parcela de contribuição. O mundo tem outras pessoas fazendo o que a gente faz, a gente só manifestou isso no Brasil primeiro.

Como funciona o licenciamento de seus produtos?

Fernando – Quando você faz um contrato de licenciamento de um produto, cede os direitos, mas recebe royalties.

Humberto – As vezes acho que vendemos a alma ao diabo.

Fernando – Mas também tem uma troca. Você começa a colocar o seu produto no mundo inteiro. Tem um programa de TV na Rússia, tipo um Fantástico, que usa a Cadeira Vermelha como cenário.

Vocês desenvolvem juntos uma mesma peça?

Humberto – As vezes um tem uma idéia e o outro vai melhorando. Sou muito ansioso e preciso trabalhar, mexer em alguma coisa o tempo inteiro. Uma vez que você entra nesse processo de criação não tem volta, é uma coisa até um pouco neurótica. Hoje, pra mim, viver é criar. Eu escolhi essa profissão justamente pela liberdade de alma.

Hoje a indústria procura um trabalho dos Campana ou a grife Campana?

Humberto – Hoje eles querem a grife. Mas a indústria quer que você traga bom gosto pra aquilo. Que você coloque uma cor legal, deixe com uma linha sofisticada. Acho que não precisa ser necessariamente aquela imagem, como as cadeiras. Mas uma certa identidade.

*Publicada originalmente na revista Top Magazine (Curitiba) entre 2000 e 2004.

Entrevista com o jornalista Caco Barcellos*

Abusado – o Dono do Morro Dona Marta é uma reportagem investigativa sobre o cenário e os personagens de um morro que é o maior alvo de disputa de traficantes desde os anos 80.

Traficantes sempre despertam curiosidade pelas histórias repletas de aventuras e pela realidade que supera qualquer ficção. E, se o chefe de tudo e todos tem um ar de homem bonzinho que luta contra as injustiças de um país dividido pela desequilibrada distribuição de renda, ele se torna o alvo certo para o entendimento da cultura do crime. Assim era Marcinho VP, Marcio Amaro de Oliveira, o homem que foi durante muito tempo o dono do Morro Dona Marta. Ele ganhou notoriedade no asfalto quando cedeu uma entrevista à três jornalistas durante a filmagem do clipe They Don’t Care About Us, de Michael Jackson, nas vielas da Santa Marta, em 1996. Traído pelos jornalistas, que prometeram não identificar o entrevistado, ele passou a ser um dos bandidos mais procurados no Rio de Janeiro.

Marcinho VP também teve seu nome envolvido em polêmica depois que estreitou seu relacionamento com o cineasta João Salles, quando este foi gravar o documentário Notícias de uma Guerra Particular, também em Santa Marta. O herdeiro do Unibanco lhe pagava uma mesada enquanto ele estava foragido na Argentina, para que supostamente escrevesse uma autobiografia e largasse aquela vida. Como nessa época o nome do traficante estava entre os quinze mais procurados do Rio de Janeiro, o cineasta resolveu fazer uma auto-denúncia sobre o envolvimento. O depoimento de Salles causou uma crise na segurança pública e também contribuiu para que Marcinho fosse pego pela polícia.

Desde 2000 ele cumpria pena em Bangu 3, mas em 28 de julho de 2003, Marcinho VP foi encontrado morto em uma lixeira do presídio. A suspeita é que ele tenha sido assassinado por alguém da mesma quadrilha. Coincidência ou não, o crime ocorreu quase um mês depois do lançamento do livro do jornalista Caco Barcellos, Abusado – o Dono do Morro Dona Marta. O livro conta a história de vida de Marcinho VP e das pessoas que moram naquele morro. Trata-se de uma reportagem que mostra a terceira geração do Comando Vermelho, retrata a ocupação do morro por esta facção e a implantação de sua doutrina disciplinar. Marcinho é chamado de Juliano VP pelo autor e teve sua infância, adolescência, entrada e ascensão no tráfico de drogas contextualizadas com a evolução de situações de criminalidade na cidade. Em setembro de 2003, a mãe do traficante, Josefa Amaro da Silva Oliveira, entrou com uma ação na 4ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro com um pedido de indenização por danos morais pela morte de seu filho, um pedido de pensão vitalícia e acusa a Secretaria de Administração Penitenciária de omissão.

Nesta entrevista que segue – que foi feita antes do assassinato – Caco Barcellos falou sobre a sua rotina no morro, sobre as relações com Marcinho VP e sobre as implicações éticas e legais que um trabalho como este poderia trazer.

Como você conseguiu ter acesso às pessoas do Dona Marta?

Na verdade acho que todo jornalista conseguiria, se quisesse. Claro que não sou ingênuo de achar que é só subir o morro e bater lá, até porque o quadro é muito tenso. Mas o processo é natural. Você tem que conhecer alguém no morro, procurar uma entidade que trabalhe lá e expor o que você quer fazer. Quando se sobe o morro atrás de uma operação policial, você mostra só uma realidade atípica à vida do morro. É só gente acuada, embaixo da cama, ferida nas vielas. E quero mostrar a vida fora deste momento da violência. Acho que eles são extremamente abertos porque nunca vêem, ou vêem raramente, um profissional com esta postura. No meu caso foi um processo longo e gradual. Eu apresentava um programa na tv a cabo que era produzido nas periferias. Lembro, por exemplo, que fiz três programas na favela onde mataram o meu amigo Tim Lopes. Mas, evidentemente, eu não tava lá filmando o tráfico. Subi aquele morro para contar a história dos universitários que decidiram aplicar sua profissão para ajudar a própria comunidade. Subi avisando que era este o objetivo, mandei um recado aos traficantes dizendo que o que eu queria era mostrar a história dos universitários, e eles disseram: ‘Se é isso, na boa, na moral, manda bala.’

Mas como você conseguiu chegar no Juliano (Marcinho VP é chamado de Juliano no livro), já que ele foi traído por jornalistas uma outra vez?

Era de se esperar que ele nunca mais quisesse falar com a imprensa. Acho realmente admirável essa abertura dele, ele não tem malícia ou um instinto de desconfiança desenvolvido. Mas o fato é que ele abriu a quadrilha e falou comigo fora do Brasil também, por isso acho que a gente não pode ter preconceitos. Eles talvez sejam mais abertos do que a gente.

Você acha que as histórias do livro são romantizadas?

Acho que são humanizadas. Quando um bacana comete um crime, a gente conta a história dele, a profissão, tem aquilo tudo. E o criminoso do morro nunca tem história. A nossa posição é extremamente arrogante e classista quanto ao criminoso de baixa renda. Pode observar: criminoso de baixa renda a imprensa chama de bandido, criminoso de alta renda é acusado de. Não estou dizendo que tem que chamar o rico de bandido, mas tem que chamar os dois de acusados de. Os dois têm história, eles cometem crimes e outras coisas. Eles amam, são felizes, são perversos. Eles são tudo como somos. Só que são mais perversos no crime. A gente, que não é do morro, é perverso de outra maneira. E até acho que a nossa perversidade talvez seja mais abrangente que a deles. A deles é uma coisa pontual. Eles exploram, vendem um produto que faz mal a saúde e tal. Agora tem muita gente do lado de cá que explora o país inteiro, pela via do salário indigno, por exemplo. Salário indigno, salário de oitenta dólares, é produção de miséria, de favela, de violência pela via direta.

Os depoimentos são verídicos? Onde entra a ficção?

Tive mais trabalho para limpar os exageros do que propriamente para conquistar a confiança deles. Porque é um dos lugares de maior concentração humana do mundo, são doze mil pessoas numa linha horizontal no meio da floresta. Todo mundo se conhece, por viverem amontoados, e todo mundo conhece a história de todos. Então, quando acontece um crime no morro, provavelmente doze mil pessoas sabem em detalhes. É a versão da versão da versão. E não sei se consegui limpar todos os exageros. Acredito que mentira deliberada não houve, ninguém veio com a intenção de mentir. O que aconteceu muito é que veio com a intenção de impressionar. Porque o poder deles é muito desorganizado. Embora se fale em crime organizado, acho que é um crime organizado extremamente desorganizado. Funciona pela força, pelas armas e pela atitude de extrema violência.

Como as informações chegaram até você?

Quando os moradores souberam que eu estava falando com o Juliano e com a quadrilha, disseram: ‘Este cara está informado.’ Muitas vezes eu ficava falando com uma senhora, a dona Carmem, e de repente tinham uns vinte conversando comigo. E eu em silêncio ouvindo. Histórias e mais histórias. E, na verdade, o traficante é o morador do morro. A gente costuma separar, parece que traficante é uma pessoa do outro mundo. É o cara que nasceu e se criou ali, muitas vezes é trabalhador, deixa de ser, volta a ser…

Antes de subir o morro você já sabia a história do Juliano?

Se tenho alguma certeza na vida é de que nada é maior que a minha ignorância. Então vou para os lugares para aprender. Vou aos lugares de peito aberto, quero ouvir histórias. Sem nenhum método. Na verdade teve um método. Tive que usar uma técnica para poder eliminar os exageros e as possíveis mentiras, até para situar, porque eles não têm a menor noção de tempo. Nunca sabem o ano, o mês e o dia. Mas pedi para as famílias uma lembrança que eles deixam quando o filho morre. Eles são muito religiosos e criaram o hábito de fazer um santinho com a foto do filho morto, e ali eles põem a data de nascimento e da morte. Com isso comecei a fazer as entrevistas direcionadas por aquelas datas.

Como você trabalhava quando acontecia algo mais perigoso?

A primeira coisa que eu disse pro Juliano foi: ‘Tenho certeza de que este livro pode representar um enorme risco de morte e de cadeia.’ Ele disse: ‘Olha, não quero saber, vou morrer de qualquer maneira, quero deixar um depoimento para o meu filho.’ O filho dele estava com 12 anos e ele estava com medo de que ele entrasse pro tráfico e ele não queria isso de jeito nenhum. E outra coisa que eu disse é que eu não poderia assistir nada, e muito menos saber antes. Então se alguém chegasse e falasse, ‘amanhã a gente vai assaltar o carro-forte’, eu teria a obrigação de chegar na empresa e falar. Antes do repórter tem um cidadão que é contra a violência e a morte. E, quando eu percebia um movimento estranho, caia fora, descia o morro. Estrategicamente no meu percurso sempre deixei rastro de casas abertas para mim.

Você disse que eles são desorganizados, mas eles têm um esquema bem montado.

Comparo com uma torcida organizada de futebol. É uma coisa que você freqüenta por simpatia. Não tem um estatuto formal, não é uma firma. A boca (ponto de venda de cocaína e maconha) é uma coisa virtual, eu ficava procurando e nunca achava. Ela vai andando na medida que os consumidores vão passando. Só não é totalmente virtual por causa dos saquinhos. E sempre tem um santinho e uma vela acesa.

Por que você usou o pseudônimo Juliano para Marcinho VP no livro?

Porque é o codinome dele. As pessoas mais próximas dele chamam de Juliano.

Você sabe se ele leu o livro?

Acho que sim, o pessoal me falou que o livro está na cadeia.

Mas você teve contato com ele?

Não, depois que o livro saiu, não.

Você continua mantendo contato com as pessoas do morro?

Alguns me ligam, alguns estão preocupados, com medo que a diretoria do Comando Vermelho não goste, mas por enquanto não recebi nenhuma opinião direta do CV.

Mulheres da vida*

Desde a mais requintada até a mais vulgar, todas vendem a mesma coisa: fantasias sexuais. As mulheres da vida estão mais próximas de conseguir a regulamentação da profissão. Com a nova lei, a prostituta poderia processar aquele cliente que, depois de servido, resolveu não pagar.

Paulo amava Lúcia e Lúcia amava Paulo. Mas essa história não tem nada a ver com a Quadrilha, de Carlos Drumonnd de Andrade, na qual João amava Tereza, que amava outra pessoa, etc. Aqui Paulo amava Lúcia e era correspondido. O ano era 1855. Só que Lúcia era uma rica e bela cortesã, vulgarmente conhecida como prostituta de luxo. O fim dessa história você pode ler no livro Lucíola, de José de Alencar, um dos melhores exemplos do amor que não resistiu as barreiras sociais e morais. Lúcia é a heroína romântica, que tem um amor idealizado, é jovem, inteligente, se comporta de maneira discreta e fala francês. É bondosa e quase pura (pelo menos de alma). O cenário que a cerca são festas suntuosas e presentes caros. Outro exemplo literário é Eny Cezarino, personagem do livro Eny – o Último Grande Bordel Brasileiro, de Lucius de Melo. Há dois motivos para falar de cortesãs, metrizes, call girls, ou qualquer outro nome que dê um charme a mais as mulheres da vida. O primeiro é uma homenagem ao dia da cortesã, comemorado em cinco de março. O segundo é o começo da discussão que se abriu quando o deputado Fernando Gabeira (PT-SP) sugeriu um projeto de lei que pretende regulamentar de vez a profissão prostituta.

A questão é que esse tema mexe com valores morais de uma sociedade que prefere não ver o que acontece em sua volta. O projeto do Gabeira pretende admitir que ‘as pessoas que prestam serviços de natureza sexual fazem jus ao pagamento por tais serviços’. O modelo é inspirado no que entrou em vigor em janeiro de 2002 na Alemanha, onde as prostitutas poderão assinar contratos de trabalho; processar os clientes maus pagadores; e requerer seguro desemprego, saúde e aposentadoria. No Brasil, a proposta dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprime três artigos do Código Penal, referentes aos tipos de favorecimento da prostituição (art. 228), casa de prostituição (art. 229) e do tráfico de mulheres (art. 231), este último porque ‘somente penaliza o tráfico se a finalidade é incorporar mulheres que venham a se dedicar à atividade’. O processo está em andamento, deve ser votado ainda este ano pelo Congresso Nacional e já vem despontando diversas manifestações.

Prostituta vocacional?
Nelson Rodrigues acreditava que existem as prostitutas vocacionais, aquelas que nasceram para ser profissionais do sexo. Apesar de ser um pouco mais difícil encontrar alguém que sonhe em ser prostituta, não se pode dizer que é impossível que algumas tenham gosto pela coisa. “Entrei nessa vida porque gosto. Queria trabalhar na noite e fui para a prostituição. Vivi toda aquela época de liberação sexual, o desbunde todo e resolvi conhecer outra coisa”, diz Gabriela Leite, 51 anos, que começou a se prostituir aos 22 anos e há oito é casada e não faz mais programa. Gabriela é coordenadora da Rede Nacional de Profissionais do Sexo e presidente da ONG Davida que, desde 1992, tem como missão trabalhar pela dignidade da prostituta.

Ela defende que o dia que as relações criminosas no meio da prostituição acabarem, a profissão vai sair da obscuridade. “Quando houver uma relação clara de trabalho entre a prostituta e o dono do cabaré, do hotel, essa coisa toda, a prostituição vai deixar de ser marginal”. Gabriela cita casas, como o Café Photo de São Paulo, onde não existe marginalidade. “No Café Photo as meninas são tratadas com muita dignidade, têm plano de saúde e uma série de outras coisas. Mas, de qualquer forma, o dono do Café Photo também está dentro do código penal e, se a polícia resolver fechar, vai lá e fecha”, diz.

Os que são contra o projeto, como o deputado Orlando Fantazzini (PT-SP), não conseguem reconhecer o ser humano degradando o seu próprio corpo como profissão. Gabriela se defende dizendo que todas as pessoas usam o corpo para trabalhar. “Prostituta usa, como todas as pessoas, uma parte do seu corpo, que é o sexo. E prostituta não vende o corpo, vende fantasia sexual. E tem outra coisa. Muitas vezes as pessoas falam que a regulamentação pode incentivar mais jovens a entrar nesse mercado, só que isso não vai modificar em nada. A prostituição vai continuar do mesmo jeito. Se as pessoas quiserem ir elas vão, se não quiserem não vão”. A presidente da Davida acredita que o modelo alemão é compatível com o Brasil, apesar de se tratar de duas realidades diferentes. “Na Alemanha a prostituição era tão marginal quanto aqui, ainda é porque todo processo de mudança é lento. Conheci a prostituição em várias cidades da Alemanha e não difere muita coisa não. Esse ano a gente vai fazer uma reunião aqui trazendo algumas prostitutas alemães e holandesas para discutir sobre a experiência delas”, completa.

Joana*, prostituta há dois anos, diz que este projeto de lei, se aprovado, não vai mudar em nada a vida dela. “Pra mim não muda em nada, até porque só vou fazer isso mais esse ano, ano que vem tenho outros projetos”. Joana faz parte de uma grande massa que entra na vida da prostituição porque acredita que qualquer outro emprego não renderia a mesma coisa. Aos 21 anos, trabalhando no meio há dois, ela diz que ganha, em média, sete mil reais ao mês. “Entrei nessa vida porque quis. O que rende bastante é fazer viagens com os clientes, e faço bastante isso”. Para Gabriela Leite o discurso de Joana é igual ao de todas as meninas quando conversam com pessoas de fora. “Esse discurso de que ‘estou há pouco tempo na batalha, para juntar um dinheiro e vou sair logo’, é típico no meio da prostituição para as pessoas que estão de fora. Mas se daqui a quatro anos você for procurar a mesma menina, vai ver que ela está lá. É uma forma de se proteger, em todo lugar é assim”, diz.

Debate da oposição
Um dos maiores opositores ao projeto de lei do deputado Gabeira é o deputado federal reeleito Orlando Fantazzini (PT-SP), também presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. “Acho que temos que encontrar uma alternativa para a condição das prostitutas, mas não acredito que o projeto seja a solução, até porque ele vai institucionalizar a exploração de um ser humano sobre o outro, que pretende se degradar a troco de ganhar o sustento. Já falei com o Gabeira, não tenho preconceito nenhum quanto a essa questão, entretanto, a minha preocupação é que a gente tenha uma solução de fato para esse problema”, diz. Solução que infelizmente ele ainda não tem, mas que pretende discutir durante 2003. “Não tenho clareza de uma proposta acabada, mas com a experiência do trabalho que a gente desenvolve nas ruas, dá para constatar que a maioria que opta por esta situação é por causa de uma situação financeira”, completa.

As prostitutas foram incluídas na Classificação Brasileira de Ocupações, em 2002. São profissionais do sexo, reconhecidas pelo ministério, mas isso ainda está longe de isso ser considerado um emprego. O site www.mtecbo.gov.br/busca/descricao.asp?codigo=5198 traz os direitos e deveres dessa classificação. É como um grande dicionário com as informações sobre competências sexuais (como demonstrar capacidade de persuasão, manter sigilo profissional e respeitar código de não cortejar companheiros de colegas de trabalho); descrição da profissão; características do trabalho (que diz que para o exercício da profissão requer-se que os trabalhadores participem de oficinas sobre sexo seguro); as áreas de atividades e os recursos de trabalho (como guarda-roupa de batalha e gel lubrificante a base de água). Desde então a categoria das profissionais do sexo é 5198-05.

Perfil de prostituta

A Universidade de Brasília realizou uma Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial e conseguiu traçar um perfil da prostituta brasileira, além de rotas do tráfico de mulheres. Lançada no Fórum Social, que aconteceu durante os dias 23 e 29 de janeiro, a pesquisa teve o objetivo de traçar um diagnóstico da situação no Brasil e sugerir formas de tratamento. “O perfil da prostituta basicamente se assemelha na América Latina. São mulheres jovens, de classes populares, com baixa escolaridade, que habitam espaços urbanos periféricos, moram com algum familiar e, a maioria, tem filhos”, explica Maria Lúcia Leal, coordenadora técnica da pesquisa. Maria Lúcia diz que a questão da vulnerabilidade social e da violência estão relacionadas diretamente com a motivação dessas mulheres a caírem nas redes de exploração sexual e uma dessas redes é o tráfico.

“Há uma demanda muito grande de mulheres de classes populares da América Latina e Caribe para prestar serviços precários em outros países e também para servir às redes de exploração sexual. E no Brasil a gente conseguiu chegar a 241 rotas, sendo 131 internacionais. O que se viu é que existem mais ou menos dois tipos de comportamento: um é o das meninas que caem por ingenuidade, por ilusão, não sabiam que o destino delas seria desta forma; o outro é daquelas que sabem que muitas já morreram, que correm perigo, mas vão lá corajosamente, assumem e acabou”, diz Maria Lúcia. A maioria das prostitutas brasileiras tem entre 15 e 25 anos e são afro-descendentes. O tráfico para fins sexuais também acontece com mulheres e garotas negras e morenas, com idade entre 15 e 27 anos.

Amélia que era mulher de verdade?
Lurdes Barreto é uma senhora de 60 anos que pegou o fim do tempo glamouroso da profissão. Ela conta que quando começou a batalhar, aos 15 anos, a prostituição era totalmente diferente. “Era mais romântica, mais organizada, mais arrumada, com muito mais brilho. Cheguei na prostituição no fim dos anos 50 e esse glamour durou até os anos 70, quando em Belém do Pará foram fechadas as zonas”. Lurdes conta que naquela época existiam as dançarinas de cartões. “O homem comprava um cartão para dançar com uma mulher e sentir toda a sensualidade para só depois fazerem o trabalho sexual. Não era chegar, chamar para a mesa e ir direto para o quarto. Tinha o namoro, a conquista”, completa.

Lurdes trabalhava e morava na mesma casa e, além disso, tinha aula de etiqueta, aprendia a andar de salto alto, qual era a roupa mais adequada para as diversas ocasiões, entre outras coisas. “O tratamento era muito diferente porque antes as casas eram fechadas, a gente ficava confinada e quem freqüentava era a alta sociedade. Hoje está tudo nas ruas. Eu ganhava bem, até porque naquele tempo era só a gente que preparava os homens para casar”. Hoje ela faz parte do Grupo de Prostitutas do Estado do Pará, o Gempac, que luta também pela dignidade da prostituta. Lurdes acredita que somente a regulamentação fará com que o respeito, que se perdeu com o passar do tempo, seja recuperado.

15 anos sem Eny

Eny, o Último Grande Bordel Brasileiro, livro de Lucius de Melo, retrata com perfeição o período charmoso da profissão. O auge de Eny foi durante os anos de 50 e 60 quando o tabu sobre sexo era ainda mais forte e quando as mulheres – pelo menos na teoria – casavam virgens. Isso fazia com que as prostitutas fossem apontadas na rua como pecadoras. Foi justamente o moralismo que deu o requinte a profissão. “Como a Eny sabia que iria ser apontada na rua, fazia questão de aparecer muito bem. E ela tinha as atrizes de Hollywood como modelo, então levava as meninas do bordel ao cinema para assistirem filmes com a Elizabeth Taylor, Sophia Loren, Rita Hayworth, que eram as atrizes que estavam em evidência naquela época, para ver como elas se vestiam. Ela ensinava etiqueta para as meninas. Se você vir as fotos, vai perceber que parece baile de debutantes com aqueles vestidos de tafetá, de alta costura. Você não diz que são prostitutas, são típicas meninas de família. E esse foi o grande segredo da Eny”, diz Melo.

Eny teve a audácia de transformar o seu bordel em um ambiente familiar. A casa era refinada, as meninas tinham um comportamento discreto, sabiam beber, falar e seduzir. “Hoje a prostituição está muito vulgarizada, a sociedade está muito mais tolerante. Quando tem uma mulher na rua fazendo ponto, ninguém mais aponta porque é muito comum”, completa Melo.

Eny Cezarino nasceu em São Paulo, em 1917, na Vila Mariana. Logo que Nicolau Cezarino, o avô, veio da Itália para o Brasil, abriu uma fábrica de fogos de artifício. Mas, por ironia do destino, Nicolau morreu durante uma explosão e aos poucos o patrimônio da família foi se deteriorando. Eis que então, Eny abriu o seu bordel porque queria melhorar de vida. Ela foi responsável pelo turismo em Bauru, localizada a 350 quilômetros de São Paulo capital. “A casa de Eny teve visitantes ilustres como Jânio Quadros – que foi pedir apoio político a ela –, João Goulart e Vinícius de Moraes, que se hospedava no bordel quando ia fazer show no interior de São Paulo. E ela sempre ajudou a cidade. O amor que as pessoas tinham por ela é porque ela fez muita caridade”, diz Melo. Eny morreu em 1987, há quinze anos, na miséria, tentando vender seu último anel de brilhantes. Vários foram os motivos que levaram o bordel à falência, como a mudança de costumes, a abertura de motéis e a liberação da pílula anticoncepcional. O livro de Melo está sendo roteirizado e em breve Eny estará nas telas dos cinemas.

A feminista que apóia as putas
Camille Paglia diz no livro Vampes e Vadias, de 1994, que “o moralismo e a ignorância são responsáveis pela constante estereotipagem das prostitutas pelo seu mínimo denominador comum – as viciadas doentes, prostradas nos pórticos da cidade, que usam ardis para arranjar dinheiro para droga. Toda profissão (inclusive a acadêmica) tem seus vagabundos, trapaceiros e imprestáveis”. Palavras de uma das mais polêmicas feministas mundiais. Conhecida como libertária dos anos 60, a lésbica feminista de opiniões ferrenhas, Camille Paglia surpreende com seu discurso sobre a falsa cristandade que divide a mulher em Maria, a Mãe Sagrada, e Maria Madalena, a puta. “Eu protesto contra essa trivialização da profissão mais antiga do mundo. Respeito e presto homenagem à prostituta, governante da esfera sexual, em que o homem tem que pagar para entrar. Ao reduzirem as prostitutas a casos de caridade piedosa que necessitam da sua ajuda, as feministas da classe média são culpadas de arrogância, presunção e pudicícia”, diz no mesmo Vampes e Vadias. Paglia sempre teve o papel de questionar o status quo americano, mas sem deixar de levar em consideração o que o american way of life trouxe de contribuição para o mundo.

O beijo da puta

Quem acha que as prostitutas não são uma classe organizada está cometendo um ledo engano. No Brasil, a Rede Nacional de Profissionais do Sexo reúne 27 organizações formais e 30 grupos informais. Elas organizam encontros, congressos e debates para diminuir o índice de contaminação de doenças entre as prostitutas e conscientizá-las sobre seus direitos e deveres. Um dos exemplos de que este movimento está ganhando cada vez mais força é o jornal Beijo da Rua, publicação da ONG Davida. Ele é dirigido especificamente as prostitutas e cobre todos os acontecimentos políticos, sociais e culturais que envolvem estas mulheres. Informal e divertido, faz questão de mostrar pessoas que se prostituem e são felizes com o que fazem. Se você quer obter mais informações sobre esta publicação, por mandar um e-mail para beijo@davida.org.br.

Puta da vida

–          O que você não gosta numa transa?

–          Não deixo o cliente me dar pancada.

Esse diálogo é da entrevista que o jornal Beijo na Rua, de maio de 2002, fez com a prostituta Vânia, que está há 50 anos no ramo. Talvez resuma como a profissão é vista por algumas profissionais do sexo. Obviamente, o caso de Vânia está longe de se tornar uma romântica obra literária. Ela faz parte da maioria que não pertence à classe das profissionais luxuosas. Depois de conversar com prostitutas e pensadores sobre o assunto é inevitável concluir que muitas estão nessa vida na esperança de que apareça um Richard Gere qualquer, como aconteceu com Julia Roberts, no filme Uma Linda Mulher. Outras se justificam dizendo que a vida é dura, mas não é tão ruim assim. Mas, para todas as relações sexuais são banais e o prazer é um acidente de trabalho. A constatação do problema social que é a prostituição – não podemos esquecer do que se refere à prostituição infantil, que não está em discussão nesta matéria – pelo deputado Gabeira e a sugestão da lei de regulamentação, está despertando uma discussão sobre o papel da prostituta na sociedade. Talvez nada mude para elas nem para nós, mas parece que o primeiro passo está dado, mesmo que seja com anos de atraso.

Entrevista Oscar Maroni Filho

Oi Maroni.

Você sabe o que da minha pessoa? Veja bem, eu estou lhe fazendo essas perguntas porque eu não quero e não vou te dar uma entrevista do tipo assim: o cafetão que vive de exploração de mulheres. Desculpe a minha objetividade. Veja bem eu sou um empresário, eu tenho cinco empresas, eu tenho a maior casa noturna da América Latina indiscutivelmente que é o Bahamas Club, tá, eu sou o empresário da noite mais antigo do Brasil, eu tenho 30 anos de noite, eu sou um dos grandes fazendeiros da pecuária de porte do Estado de São Paulo, fazenda Santa Cecília em Araçatuba, tenho oito mil bois, posso falar porque é tudo declarado no imposto de renda, eu comprei praticamente um quarteirão atrás do Bahamas, e o hotel está quase pronto, é um cinco estrelas, com 13 andares, com 227 apartamentos, 300 vagas na garagem, três restaurantes, teatro, uma academia de ginástica, depois eu vou te passar tudo isso, tá? Depois eu sou o dono da revista Penthouse e da Hustler, principalmente da Penthouse que é uma revista que fala de sexo, política e protesto. Tudo bem? Eu não copio o Larry (Flynt), é meu amigo, eu estive em Los Angeles, o conheci e até é meu sócio por causa da Hustler. Conheci pessoalmente, tirei fotos com ele e tudo. Ele usa cadeira de rodas, tudo aquilo no filme é verídico, ele é uma pessoa sensacional. Agora veja bem, isso é Hustler, Larry Flynt, que as pessoas confundem. Bob Cuchone revista Penthouse. Uma revista que fala de sexo, política e protesto. Você tem os meus textos sobre isso? Na internet  tem, normalmente eu fico sempre procurando textos que gerem polêmica. Entendeu isso? Quinta empresa é o meu portal que está sendo construído, http://www.ow.com.br. Você já entrou? Entra agora nesses quinze minutos, navega nele e você vai ter um perfil meu. Ta bom? O portal está em construção.

Tá, então daqui a pouco eu te ligo.

Veja bem eu sou um homem de 53 anos de idade, um metro de noventa de altura, 103 quilos, pai de quatro filhos, sou um homem com grau universitário, tô te dando o meu perfil, tá? Psicólogo, trabalhei na área clínica seis anos, e fui professor de psicologia durante dois anos, tá? Eu não tenho certeza de nada da vida. Só tenho duas coisas: a primeira chama-se Deus e a segunda chama-se direito de liberdade de expressão. Nós somos o que nós pensamos e o que nós comemos. E o que nós pensamos são as informações que nós adquirimos pelos nossos cinco sentidos no mundo que nos cerca. Correto ou não? E eu sou radicalmente contra sobre todas essas posturas paternalistas que nós temos principalmente no nosso país. Que vem da Igreja ou que vem de meia dúzia de pessoas que se acham mais inteligentes, mais expertas, mais vividas e com isso tem direito de impor valores em outros grupos. Deu pra entender? Você mulher se for estuprada por um tarado, segundo a igreja, você tem que manter o seu filho. Você mulher se for estuprada por um aidético você não pode fazer um aborto. Você mulher não pode usar um preservativo numa relação. Você não pode usar anticoncepcional. Você garota de programa tem que passar por uma hipocrisia social dizendo que você não existe, mas fique escondida por detrás dos panos sofrendo pressões de cafetões e de policiais desonestos. Não vamos aprovar lei nenhuma porque prostituta não existe. Não é essa a hipocrisia da nossa sociedade? Tá. E se tem alguém que entende de prostitutas e garotas de programas e tem amigas prostitutas e garotas de programas, chama-se Oscar Maroni. Eu milito no ramo há trinta anos e me orgulho do que eu faço. Não porque eu exploro mulheres. Porque eu tenho um estabelecimento freqüentado por homens, mulheres e casais, aonde eu não tenho vínculo em hipótese nenhuma com as mulheres. E elas freqüentam também o meu estabelecimento. Porque a área da sexualidade humana sempre me fascinou. Por isso inclusive eu me tornei um psicólogo. Eu vivo a sexualidade humana na prática há trinta anos, em um estabelecimento onde entram 200 homens/dia e 150 mulheres, em média, dia e 30 a 40 casais dia. Eu tenho seis anos de consultório falando de sexualidade.

Que foi o que te levou a começar, né?

O caso foi o seguinte, foi um japonês, baixinho, feio, tímido e cheio de espinha, me lembro muito bem dele, e ele não tinha uma parceira. Eu me formei em terapia comportamental, conhece a terapia comportamental? Foi daí que tudo começou. Eu vou lhe falar pode até gerar uma polêmica, mas se você quer por na revista, você coloque. Eu considero uma garota de programa uma função social.

Por que?

Como um médico, um engenheiro ou um advogado. Por que? Ou como uma redatora de uma revista. É uma profissão, é um trabalho, tanto que o Gabeira está querendo legalizar. Primeiro: por que? Porque ela existe. Nós não podemos nega-la. É a segunda profissão mais antiga do mundo, porque a primeira foi o alcagüete que a denunciou. Correto? A prostituição, o que eu estou te falando é com conhecimento literário, eu conheço a fundo, e passo isso para você. O que se tem mais antigo na prostituição, na história e na literatura, foram na época dos fenícios quando tinham as prostitutas dos templos, que eram sacerdotisas que se prostituíram para angariar alimentos, para ser trocado por trabalho, para ser construído os templos. Você entendeu? Começa daí. Até tem os comentários de que a primeira prostituta foi a Eva, né, pra ganhar uma maçã porque tava com fome ela deu pro Adão, mas isso é outra história. Correto? Bem, mas eu sou a favor da legalização da prostituição porque você faz com que essa profissão se torne mais humana, em todas as vezes que você legaliza uma profissão, que você estabelece normas, você faz com que ela se torne mais humana. E isso um médico, um engenheiro, um advogado, a profissão da faculdade de comunicação, lembra quando tinha aquela discussão que só podia trabalhar em jornal quem tivesse cursado uma faculdade? Eu estou vindo inclusive de Amsterdã, uma viagem que eu fiz pro Egito, Turquia, Holanda e Paris. Eu fiz com os meus filhos que eu vi culturas diferentes. Eu vi o quanto é importante a liberdade em um país. Eu vi uma frase, eu falo muito mal inglês, mas eu vi uma frase em Amsterdã que eu achei maravilhosa.

Qual era a frase?

Freedom, is beautiful, liberdade é linda. Correto? E lá a coisa é legalizada, é com carteira de trabalho, é com carimbo do serviço de saúde, na Alemanha paga-se impostos, na Holanda abate-se as despesas de trabalho, inclusive preservativo, na hora de declarar o seu imposto de renda, tá certo? E são pessoas felizes e realizadas. Veja bem, eu tenho a seguinte postura. No caso de rufianismo, menor de idade e droga, entendeu o que eu falei, cafetinagem, menor de idade, exploração da mulher, caso de polícia, eu denuncio e denuncio várias vezes. Correto? Nós temos que parar com meia dúzia, não todos, de pessoas que trabalham no ministério público e são hipócritas que não vêem certas realidades. Você vê cafetinagem na rua Augusta e coisas do tipo e que ninguém mexe, né? E no instante em que nós tivéssemos uma legalização disso está mulher não precisaria mais que se sujeitar a cafetões, não precisaria se sujeitar a policiais inescrupulosos ou a clientes que as chantageiam e não pagam. Eu estou falando também daquela prostituta de cidade do interior, humilde, simples, que quando chega aos 45 anos não teve nenhum apoio do estado, não teve nenhuma aposentadoria, e fica ao Deus dará. Estou falando de uma hipocrisia que não se permite a legalização e por não ser legalizadas é aí que são exploradas, né?

E você acha que o fato de legalizar vai atrair mais prostitutas?

Aumentar a prostituição? Não. vamos fazer uma análise assim, então. É o seguinte, vamos fazer uma comparação com uma outra profissão que não envolva aspectos morais. Digamos que não exista a profissão de pedreiro. Espera aí. Existe o trabalho de pedreiro, mas não existe a profissão legalizada de pedreiro, ou existe não sei registrada em carteira. Mas vamos teorizar. Quer dizer que se você legalizasse a profissão de pedreiro iria aumentar o número de pedreiros? O que aumenta uma profissão é a pré-disposição e a necessidade social e remuneração. E a necessidade individual. E os valores morais individuais. Os meus filhos, eu tenho 30 anos de noite, não vem a prostituta como um mal social e não é por causa disso que a minha filha se tornou uma prostituta, ela faz faculdade de cinema. Entendeu?

Entendi.

O que existe sim é o seguinte. Eu acho que iria acontecer o seguinte estado, quem já é iria ter menos receio de ser identificada pela sociedade, porque iria dizer que é aceita, até foi legalizada. Mas nós temos que pensar na aprovação da lei pelo lado humano desses seres humanos que estão em condições não humanas de trabalho. Porque no instante em que nós temos as normas da profissão nós iríamos dar condições mais humanas para que elas exerçam a sua profissão. Saindo do anonimato, do ficar escondidas nas cidades do interior em locais aonde correm mais riscos de criminalidade, por exemplo, ser reconhecidas pela sociedade, porque concorda comigo na primeira análise é uma condição hipócrita, moral da época que não existia os anticoncepcionais, da época que não existia a penicilina, a propagação de doenças era grande a mulher que se relacionasse sexualmente engravidaria, correto? Surgiu o anticoncepcional e a penicilina, a moral fica mais frouxa. Concorda comigo ou não?

Você acha que era mais glamorizado antes?

Eu não diria que é glamour. Eu acho que sempre foi romantizada a profissão. Você veja a novela da Globo, fazem sobre a prostituição na época da formação do estado de São Paulo, a Esperança, falava detalhadamente sobre a prostituição. Outra que falava detalhadamente era a Hilda Furacão e nas mais diferentes épocas. Sempre nós tivemos na literatura, na Bíblia, atire a primeira pedra… A época do romantismo sempre existiu e existe inclusive até hoje. Sempre existiu. O homem que se apaixona pela prostituta e socialmente não é aceito.

Mas tem muito disso, por exemplo, aí no Bahamas?

Veja bem, eu prefiro sempre deixar bem claro, porque senão eu fico numa situação delicada. O Bahamas é freqüentado por mulheres, homens e casais, garotas de programa, não de programa, os mais diferentes níveis. E veja bem eu estou te falando agora sobre prostituição porque lá dentro do Bahamas e pincelamos um item. Porque eu posso te falar agora sobre jogo de bilhar, posso te falar dos restaurantes e dos jogos exóticos que tem lá dentro, posso te falar das saunas, nós estamos falando de prostituição porque no Bahamas também ocorre não vou negar isso, não posso negar. Eu não posso ir na recepção e dizer assim: a senhora é prostituta, não pode entrar. Eu teria problemas legais por discriminação. Deu pra entender? Daí você iria dizer: não eu sou jornalista. Não sou prostituta, me metia a boca na cara. Então eu abro as minhas portas e entram garotas de programa, não de programas, como em qualquer outra boate de São Paulo. Eu não estou me pondo na posição moralista, estou me pondo numa posição para você não ter uma posição preconceituosa e tendenciosa pra cima do Bahamas, entendeu ou não? O Bahamas é uma casa de altíssimo nível, freqüentado pelas garotas de programa mais bonitas do Brasil, tem universitárias, não universitárias, mulheres casadas, não casadas, solteiras, profissionais, não profissionais. Agora eu levanto uma dúvida: o que é prostituta? É aquela que vive diretamente da profissão? Porque existe também as profissionais liberais como por exemplo, já vi advogadas que vem aqui fazer os seus programas porque precisava pagar a prestação do carro. Tinha a sua profissão de advogada e em paralelo fazia algum bico. Dona de casa que fazia porque o marido sabia e achava excitante e não era pelo dinheiro. Então eu te conto dos mais diferentes casos.

Mas era isso justamente que eu tava te perguntando, não era uma pergunta tendenciosa.

Mas eu não estou te criticando, desculpe é o meu jeito de falar. Eu já namorei com uma garota de programa. Já e não tenho vergonha de falar. Eu sou um homem separado, uma moça, hoje ela deve estar com 24 ou 25 anos, era uma mulher sensacional, fiquei com ela durante três anos e foi uma das grandes paixões da minha vida. Eu fui casado com a mãe dos meus filhos, uma psicóloga, durante 25 anos, hoje ela tem 44. E tenho amigas, garotas de programas, mulheres sensacionais, eu tenho amigas dentistas que não valem o chão que pisam. Correto? Agora eu estou falando do Bahamas aonde é um nível de garotas de programa altíssimo. Elas cobram um programa, 300, 500 reais. são garotas que tiram 10, 12 mil reais por mês.

Trezentos reais a hora?

A hora. Mais, tem garota de 500 reais. Eu conheço garotas que em uma hora, em um hotel, o homem pagou oito mil reais pra ela e pagou as prestações da faculdade tal a paixão que esse homem ficou por ela.

Já resultou em algum casamento?

Com uma freqüência muito pequena, mas existe. O que eu observo muito é a seguinte relação: o que me machuca não é ser garota de programa, é me chamarem de puta. Entendeu? Edu diria que uma garota de programa tem uma função social, ela é uma psicóloga, ela é um ouvido, ela é um padre, porque ela muitas vezes é um confessionário, e veja bem, como tudo é relativo, eu, por exemplo, considero o Padre Marcelo Rossi uma coisa nociva para a nossa sociedade. Ele diz assim, domingo na hora, as seis horas da manhã nós vamos rezar pela nossa senhora da proteção e você não vai mais ser assaltado. Em vez de dizer assim: cidadão, exija dos seus governantes melhores condições de segurança. Quando o Padre Marcelo diz assim: senhores, vamos rezar com a carteira de trabalho na mão. Senhor governante, eu quero o meu emprego, eu nasci neste país, eu pago os meus impostos, eu tenho os meus direitos. Eu considero que ele é nocivo no instante que ele prega a facilidade das pessoas, a submissão…

Mas você acha, Maroni, que algum dia essa situação de hipocrisia irá mudar?

Já mudou bastante hoje, hoje garotas de programa de alto nível são convidadas pra festinhas de crianças de 15 anos em saguão de prédio.

Mas elas ainda sofrem preconceito…

Elas ainda sofrem preconceito, mas o que eu digo a você elas ainda sofrem preconceito entre aspas, porque muitas mulheres hoje que são artistas famosas foram garotas de programa. Você não pode publicar isso, mas você sabe, Hebe Camargo, a Xuxa, você acha que a Xuxa gostava de pau preto? Então?

Mas essas mulheres se redimiram, ironicamente, perante a mídia…

Se arrependeram pelo preconceito social. Olha, uma vez eu vi uma frase de um juiz, e esse juiz disse o seguinte: o estado não tem o direito de interferir num contrato verbal entre um homem e uma mulher. Eu achei isso fabuloso. A prostituição no Brasil não é ilegal e nunca foi. O que é ilegal é a manutenção de casa de prostituição, que são estabelecimentos não legalizados, que vivem da exploração das mulheres. Então inclusive esse juiz dizia o seguinte, também: uma mulher que não sente mais nada pelo marido, mas está com ele porque ele lhe paga o aluguel e a escola das crianças e se relaciona com ele sem sentir mais o orgasmo, e tem que se lubrificar com gel porque não se lubrifica mais, é garota de programa ou não? É prostituta ou não? É discutível o que é uma mulher ser prostituta. Uma mulher que está num emprego porque ela é bonita e gostosa e não porque ela é competente, e dá pro patrão de vez em quando? Existem dezenas de casos. Todo mundo sabe o que é essa concorrência desleal. Apesar de que eu considero a plástica e a beleza muito importantes. Mas a grande discussão do que é se vender? Olha, eu vou até mais a fundo, hem. Uma freira, que se tranca dentro de um seminário e reprime toda a sua sexualidade. É saudável, é sadio? No instante em que 75 por cento dos impulsos do ser humano é voltado pela manutenção da espécie e a reprodução que no fundo é a sexualidade. No instante que você pega adolescentes e os traça dentro de escolas de padres, conventos e depois lá dentro ocorre pedofilia, de uma religião hipócrita e é contra a prostituição, será que se esses padres tivessem relacionamentos sexuais com prostitutas uma vez por semana e dariam vazão a sua sexualidade, crianças não sofreriam menos? Eu to me colocando em posições bem extremas que é uma realidade social. Uma mulher que senta ao lado de um homem e que fica durante 40, 50 minutos tomando whisky com ele e ele chega inclusive a ter lágrimas nos olhos quando ele diz da esposa e da família, aonde ele já não sente mais nada, mas ele se sente um escravo, porque ele tem que sustentar todo aquele pessoal. Uma garota de 20 anos que vai pra cama com um homem de 55, 60 anos, e com isso ele se sente mais jovem, ele se sente mais alegre, mais feliz, será que essa mulher não teve uma função social muito importante na vida desse senhor? Porque esse preconceito que homens de mais idade não podem se relacionar com mulheres mais jovens? É um preconceito social. Os homens de mais idade são lixos? São coisas depositadas nos cantos das casas, vendo televisão, e não tem mais direito a vida? Sabe, um monte de hipocrisias que tem no nosso mundo. É toda uma cultura, mas as culturas elas mudam gradativamente com ousadia e com novas idéias. Mas as idéias e as grandes mudanças ocorrem por necessidades sociais. E hoje eu fecharia o seu texto dizendo o seguinte, a legalização da prostituição é uma necessidade social hoje porque se faz presente. Nós não estamos inventando a legalização. Nem o Gabeira está inventando. O Gabeira detectou uma necessidade social. Eu não sou nem a favor nem contra, mas eu sou a favor do direito de liberdade de expressão e de comportamento do ser humano. Essa é a minha defesa. Sou a favor de cada um ter os seus direitos.

*Publicada originalmente na revista TopMagazine entre 2000 e 2004.

Like a sex machine*

É fato que a simples menção da palavra pornografia causa frisson nos mais puritanos. E esse é provavelmente o motivo pelo qual essa é uma indústria que, apesar de movimentar muito dinheiro, mantém-se discreta. Assistir a um vídeo pornô é ver na tela situações de desejos lascivos que mexem com o imaginário fantasioso dos telespectadores. E pelo número crescente de produções percebe-se que é muito mais excitante do que se pensa. A origem é a palavra grega pornéia que juntamente com mais três outras – pornos, pornê e pornéuo – são usadas no Novo Testamento para a prática de relações sexuais ilícitas, imoralidade ou impureza sexual em geral (quando ler isso, lembre-se que a igreja prega o sexo apenas para a reprodução, proíbe o uso de preservativos e contraceptivos).

O auge deste estilo cinematográfico foi nos anos 80, fenômeno que durou até a metade da década quando a explosão do videocassete e a diminuição dos custos para a produção de filmes banalizaram o gênero, contribuindo para a estagnação na década de 90. “Golden Age” é a especificação dada pelos críticos americanos ao período que abrange mais ou menos o final da década de 70, até a metade da de 80, como sendo o mais significativo da indústria pornográfica americana. Nomes como Traci Lords, Ginger Lynn, Amber Lyns, remetiam diretamente as grandes divas da pornografia. Ashlyn Gere, a brasileira Elle Rio, Nina Hartley, Cicciolina, Stacy Donovan, Erica Boyer, Debbie Diamond, Chrsty Canyon, sem esquecer as musas da geração pós 87, como Aja e Tori Welles, fizeram a festa nas produções eróticas da época. Antes de o vídeo tomar conta, os filmes eram realizados em película 35 milímetros e os diretores e roteiristas, muito mais divertidos.

Alguns atores como Jamie Gillis e Jack Baker tiveram seu tempo de glória como os veteranos do pornô. Ron Jeremy, que marcou época, tinha um físico nada condizente com as produções de hoje em dia, com homens bombados, típicos trogloditas – para usar uma gíria em alta nos tempos da quase pornográfica Casa dos Artistas. Ele era gordo e baixinho. Acabou se tornando, depois, um ator cult e participou do primeiro filme dos criadores da série South Park, “Orgazmo”, em 1997. A década de 80 também teve quem tratasse do pornô escatológico, como Dark Brothers, Water e Gregory Dark. Não podemos esquecer de citar John Stagliano que, na década seguinte, chegaria a fazer filmes no Brasil, durante o carnaval. Mas a indústria pornográfica decaiu em muito no início dos anos 90. Os motivos, vários. Um deles foi que as produções feitas em 35mm se tornaram raras. Além disso, teve o episódio envolvendo a atriz Traci Lords e um inimigo muito mais forte e devastador: a AIDS.

Ninfeta escandalosa

O caso Traci Lords daria uma comédia sobre a tentativa frustrada da polícia americana em acabar com a festa da pornô arte. A atriz, que era uma das mais bem pagas do ramo, foi presa em maio de 1986, por agentes federais, acusada de ter feito mais de 77 filmes quando ainda era menor de idade. O fato é que a ninfeta conseguiu destruir o ápice do império pornográfico americano. Nos Estados Unidos isso é considerado crime federal e um prato cheio para os conservadores da época do ex-canastrão Ronald Reagan acabarem com a orgia. O governo se mobilizou em um imenso processo contra a indústria, mas a maioria das pessoas envolvidas usou a quinta emenda (aquela que diz que ninguém pode ser obrigado em processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo) para se defender ou argumentou que era “indiscreto perguntar a idade de uma dama”, justificando assim o fato de ninguém ter questionado à Lords com quantos anos ela aprendeu as jogatinas do sexo que aplicava em cena. Lords, que não condizia muito com designação acima, aos 13 anos tinha feito um aborto e aos 15 fugiu para Los Angeles com um homem 30 anos mais velho, ao qual chamava padrasto. O caso era que ela tinha uma certidão de nascimento falsa. Quando o governo percebeu que não iria de maneira alguma chegar a quem queria, tentou processar Lords por fraude. Mas já era tarde, um acordo entre cavalheiros com a promotoria encerraria o caso. O máximo que aconteceu foi que todas as fitas em que Trace Lords trabalhava foram apreendidas e tornaram-se objetos de colecionador. Se você tem uma, esconda-a. A atriz, depois do processo, filmou um único filme na Europa, “Trace I Love You” e abandonou o cinema pornô. Depois, participou de vários filmes B de terror e gravou um cd de dance music dando continuidade à carreira artística.

Pornô na sala de aula

A pornografia, agora, é trazida para as salas de aulas nos Estados Unidos. Três professores – Richard Burt, professor de inglês na Universidade de Massachusetts; Henry Jenkins, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT); e Hope Weissman, professora de Estudos Femininos na Wesleyan University – representam um movimento que vem ganhando corpo e coloca em questão os limites da liberdade acadêmica ao trazer a pornografia para as salas de aula. A indústria, que somente nos Estados Unidos movimenta 14 bilhões de dólares anualmente, será tema de investigação acadêmica. Em momento algum isso é tratado como um atentado a cultura americana. Trata-se de não querer ignorar um assunto que está amplamente difundido por nossa cultura. Hollywood roda cerca de 400 filmes por ano e a indústria pornográfica como um todo filma entre nove e 11 mil títulos. Os estudos, que começaram a ser realizados há cerca de dez anos, respondem em parte ao crescimento do mercado pornográfico e também como uma crescente tendência dentro da academia de abrir espaço para estudos sobre cultura de massa, gênero e temas femininos.

Porn Star

Em novembro de 2001, foi lançado o documentário “Porn Star: The Legend of Ron Jeremy”. Ron Jeremy Hyarr, nascido em Nova Iorque, foi possivelmente uma das maiores estrelas do pornô hollywoodiano. Já citamos que ele era feio, baixinho e barrigudo, mas vale relembrar que era assim mesmo quando estava em cena. O documentário sobre a vida do ator que fez mais de 650 filmes – deixou a carreira universitária para se dedicar ao sexo – é curioso principalmente por se tratar de uma atividade considerada inglória e decadente.

Boogie Nights

Um exemplo educativo da indústria de entretenimento para adultos é o filme Boogie Nights que mostra a ascensão e a queda do império da pornô arte. É a tentativa, por vezes frustrada, de alguns diretores cinematográficos em juntar o sexo cru a tramas interessantes. O diretor Paul Thomas Anderson mostrou os bastidores de uma indústria comparável à máfia italiana. Boogie Nights é o coração da indústria das drogas e do sexo em Los Angeles. O diretor conseguiu explicitar os atrativos de ser uma estrela e o preço que certas pessoas estão dispostas a pagar para conseguir brilhar.

Pornô brasileiro

O Brasil produz vídeos pornográficos em grande escala. E tem muita gente especializada no assunto. Um dos nomes mais cotados é o do diretor Marcello Storelli. Formado em RTV, pela Faap-SP, desde 96 trabalha no ramo, quando foi convidado por Stanlay Miranda para fazer parte do império da Buttman do Brasil. Aos 26 anos, dois anos e meio de pornô, Storelli – que já foi assistente de palco do programa da Mara Maravilha, no SBT -, começou editando fitas na Buttaman e hoje assina os melhores filmes da casa. Casado, pai de uma filha, o diretor espera receber algum dia o AVN Pornô Awards, o Oscar do gênero. Para ele, John Stagliano, Rocco Siffredi e Joey Silveira são os melhores mestres. No Brasil, Stanlay Miranda e Marcelo Storelli, diz com modéstia. Em entrevista por e-mail à Top Magazine, Marcelo deixa claro que “não há limites para a perfeição quando se faz com amor”. Leia a seguir a entrevista.

Sexo sempre foi uma especialidade?

Com certeza, pois não basta pegar uma câmera, colocar um casal transando em um quarto e sair gravando. Tem que unir técnica com sensibilidade.

A matéria prima da pornografia é a imaginação?

Todas as fantasias sexuais, o voyeurismo, o contato com a pele e a sedução fazem parte da matéria prima.

Quais os maiores libertinos no século 20?

Merlin Monroe e Cicciolina.

Qual é a preferência mundial?

Acredito que seja o sexo anal, porque é teoricamente o limite da mulher, e a dupla penetração.

O que é bizarro para você?

Sexo com animais.

Você acha que a pornografia está nos fazendo cada vez mais assexuados?

Acredito que não. Cada um já nasce com o tesão dentro do corpo. Acho que podemos ajudar em alguns casos.

Você considera seus filmes artísticos?

Artísticos e sedutores.

Todos os atores trabalham pensando no sexo pelo sexo apenas?

Não, pois o trabalho profissional que eles fazem também é muito rentável.

Na minha opinião a produção dos filmes são limitadas. O que você pensa em relação a isso?

O ideal é fazer um filme em que o telespectador não precise apertar o FF do vídeo e que ele possa se masturbar e gozar com o que está vendo.

O Brasil produz cerca de 400 filmes pornôs por ano, o mesmo número que é despejado no mercado americano semanalmente. Qual a expectativa de crescimento do mercado brasileiro?

O mercado brasileiro está em grande crescimento, pode-se ver até mesmo nossa mídia abrindo espaço para este tema.

Como é feita a seleção dos atores/atrizes?

Recebemos cartas de todo lugar do país, fazemos uma seleção e chamamos para uma entrevista.

Precisa, no caso dos homens, ser necessariamente bem dotado?

Não é o tamanho que faz a diferença na cena e sim a naturalidade dos atores.

Todos os atores têm que usar camisinha?

Nos filmes brasileiros sim.

Por que da sua aversão ao Viagra?

Porque o ator não fica em seu estado normal.

Como é o clima das gravações?

Super descontraído até o momento de iniciar a cena. Pois como lidamos com o psicológico dos atores a tensão é muito grande.

Quando as cenas não dão certo de primeira, demora para os atores se recuperarem?

Apagam-se as luzes, toma-se um banho e voltamos a trabalhar. É super tranqüilo.

Você disse que tem atores fixos, mas que estão sempre contratando novas mulheres. Pode-se concluir que as mulheres têm maior aptidão pra profissão?

Na realidade não. O que acontece é que não podemos correr o risco de colocar um ator inexperiente e ele não ficar ereto.

Cinco filmes de Marcello Storelli

–          Absinto

–          Meninas de Ouro Preto

–          Serpente

–          A sedutora

–          Abuso

*Publicada originalmente na edição 38 da revista Top Magazine.